A fase “historiofágica” do romance

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Há uma fase da escrita do romance que eu batizei de “historiofágica”. Pode acontecer no início (e é ideal quando acontece), mas pode acontecer também perto do final. É geralmente nesses dois pontos perigosos: ou quando a história não existe, e você está tão interessado nela que quer incorporar tudo que está lendo, vendo e ouvindo, ou quando ela já existe e você já não está mais tão interessado assim, e sente a mesma tentação porque, apesar de saturado do tema, tudo ainda te faz lembrar dele. Você acha que, incorporando essas novas referências, você vai conseguir consertar os defeitos que deixou pelo caminho ou recuperar aquele ânimo já perdido, de quando tudo era ainda uma novidade.

Então lá está você numa maca, prestes a fazer um exame de ressonância magnética, e lembra-se de que escreveu uma cena parecida no seu romance: a personagem na maca, prestes a fazer também uma ressonância. Você tenta recuperar a cena pela memória, tenta lembrar se conseguiu descrever a mesma sensação de claustrofobia, o mesmo incômodo do barulho ora hidráulico, ora mecânico, ora elétrico. Tchiu, tchiu, tchiu. A onomatopeia era realmente essa? Inquieto, você descobre algo que, até então, nem suspeitava. É possível se comunicar com a técnica do laboratório através da geringonça.

“Eu sei que a posição é desconfortável, senhor Tiago, mas tente permanecer imóvel”, ela diz. E pimba: era a frase que lhe faltava. “Eu sei que a posição é desconfortável, Nina, mas tente permanecer imóvel”, você escreve minutos depois, no seu original. “Pedir para uma bailarina não se mexer devia ser um insulto”, ela diz e, de repente, você está de novo fisgado pela história que há meses você contou e que já não te anima tanto, porque você está cansado. Já se casou e já se divorciou da história. Já está flertando com outras personagens e lá está ela de volta: Nina, a bailarina, ciente da traição, reclamando de novo seus afetos e cuidados.

Sai para lá, diaba, eu já me apartei de você. Mas ela diz que ainda não, insiste, ainda falta um ponto final. Você não terminou a história, ela ainda está viva dentro de você. Você se lembra de um causo que Zélia Gattai contava sobre Jorge Amado. Os dois escritores, na mesa do almoço, conversando sobre personagens. A literatura é mesmo um milagre: um casal conversando sobre pessoas que não existem, acreditando piamente nelas, como se fosse uma fofoca compartilhada. “Ele está se amasiando com outra mulher, Zélia, isso não pode estar certo”. “Deixe disso e escreva, Jorge, você lá tem algo a ver com a vida dos outros?”.

Nossos personagens parecem ter essa vida recôndita, que independe um pouco da gente. Eles querem tomar as rédeas da nossa e não importa muito que você se ache no controle, eles vão te provocar, eles vão passar a vida te espicaçando, até você contar a história deles, às vezes, até além. É uma relação abusiva, às vezes. Se não do lado deles, do nosso lado. É também uma relação injusta com quem não tem nada com isso: quantas vezes não desdenhei da vida, porque estava ocupado conversando como eles… Quantas vezes não os julguei mais importantes, como se suas vidas não dependessem justamente do que acontece ao meu redor e fossem um mistério dissociado dessa realidade?

“Como invejo o privilégio que você terá de ver uma mulher morta”, conta-se que Flaubert disse certa vez para um amigo, antes do velório da mãe. No clímax de Os Fabelmans, lá está Spielberg, vendo a si mesmo filmando a família em frangalhos, depois da descoberta de um segredo que mais tarde ele revelará, em filme. Nossos personagens são nossos parasitas invisíveis, alimentando-se das nossas histórias, sugando delas a substância viva que os mantém de pé.

Escreva, Jorge, você lá tem algo a ver com a vida dos outros?

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 21 de setembro de 2024. 

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A União

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