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Na noite do domingo de 25 de julho de 1965, o cantor e compositor americano Bob Dylan subiu ao palco do Newport Folk Festival, em Rhode Island, com uma guitarra Fender Stratocaster ao invés do seu até então inseparável violão acústico. A multidão achou estranho e pareceu inquieta, enquanto ele testava a afinação, acompanhado por um quinteto de músicos de apoio.
A banda, enfim, jogou-se em um boogie brutal típico do estilo de tocar de Chicago. No esforço para ser ouvido por cima da música mais alta que já ecoou no tradicional evento de música folk em Newport, ele soltou a frase de abertura: “I ain’t gonna work on Maggie’s farm no more!!” Logo emendou mais duas músicas, uma delas desconhecida, que acabara de gravar em compacto e seria uma sua obra-prima: Like a Rolling Stone.
O embate entre o músico e o público foi tamanho que Dylan só conseguiu tocar três músicas e precisou abandonar o palco, diante de uma plateia ultraconservadora no plano musical, surpreendida quando ele apareceu apoiado por uma banda que tocava instrumentos elétricos — até então, sua única companhia no palco era o violão.
O que aconteceu ali foi obscurecido por um turbilhão de impressões conflitantes na imprensa. O jornal The New York Times, por exemplo, escreveu que Dylan “foi amplamente vaiado por puristas da música folk [folclórica], que consideraram a inovação o pior tipo de heresia”.
Lendas que subsistem até hoje dizem que Pete Seeger, o gigante amigo da cena folk, tentou cortar os cabos de som com um machado. Algumas pessoas dançaram, outras choraram, muitas ficaram impressionadas e iradas, outras aplaudiram, mesmo que timidamente, e outras mais ficaram impactadas pelo choque feroz da música ou espantadas pelas reações negativas que viam ao redor.
O que teve esse episódio tão breve de especial? Como se vê em Dylan elétrico: do folk ao rock, do consagrado crítico e historiador musical Elijah Wald, a tumultuada apresentação simbolizou a transição de um Dylan devoto do folk acústico para um som mais elétrico e, consequentemente, ele promoveu o rompimento com as tradições da música americana.
Ao mesmo tempo, transformou-se em um marco significativo na história da música porque gerou uma onda de controvérsias e polarização entre fãs e a crítica.
Nessa mistura de biografia e ensaio, Wald lança uma nova e necessária perspectiva sobre aquele show interrompido em que o astro americano decidiu dar uma guinada em sua carreira e trocar o folk tradicional pelo rock and roll. E acabou por fazer bem mais que isso. Um bom número de puristas do folk se sentiu traído pela mudança de estilo e viu a performance como um desrespeito às raízes da música popular.
Para outros, porém, foi um ato de ousadia e inovação que ajudou a redefinir os limites musicais da época. Além disso, moldou a cena musical da década de 1960, pois influenciou a ascensão do rock e a interseção ou fusão entre diferentes gêneros, como folk e rock.
Ao mesmo tempo, essa ousadia libertária de Dylan promoveu uma nova liberdade criativa, porque encorajou outros músicos a experimentar e a inovar sem se prenderem a estilos convencionais. Enfim, não apenas alterou o curso de sua carreira, como teve também um impacto duradouro na evolução da música popular americana e do pop mundial.
Uma encruzilhada
Essa história se tornou mais conhecida no Brasil no começo deste ano, graças ao filme Um completo desconhecido, do diretor James Mangold, inspirado no livro de Wald (e lançado em streaming pelo Disney+ em abril). Com a diferença de que o longa foi longe em recompor, com algumas licenças poéticas, o começo da carreira de Dylan. Nos escritos, não, é resgate documental e crítico do que o autor chama de “a noite que mudou os anos 1960”.
E mudou mesmo. Wald reconstrói, de forma meticulosa, as raízes e os impactos culturais, políticos e históricos deste evento seminal. Ele chama atenção que, em 1965, Dylan era o principal compositor do renascimento da música folk americana.
O livro explica que, depois de três anos de carreira, ele se sentia em uma encruzilhada e pretendia fazer daquele instante uma espécie de declaração de independência musical e de criação. Queria pôr fim ao revival do folk e aderir ao nascimento do rock como a voz de uma geração — promoveu, desse modo, um dos momentos decisivos na música do século 20.
Antes que sua nova fase “elétrica” — que o acompanharia por toda a vida — fosse reconhecida por críticos e fãs como produtora de algumas de suas melhores músicas, e sua polêmica performance em Newport, considerada um momento crucial no desenvolvimento do folk-rock, Dylan viveria situações complicadas nos anos seguintes para estabelecer sua escolha.
Por pouco não foi agredido fisicamente, em meio a insultos de todo tipo. “Nas turnês daquele ano e no seguinte, seus sets elétricos foram frequentemente recebidos com escárnio pelo público”, diz o autor. Na turnê britânica, em Manchester, por exemplo, alguém na plateia o chamou de “Judas”.
Wald observa que, na maioria das narrativas sobre o episódio, o astro é lembrado como alguém que representa a juventude e o futuro, e as pessoas que o vaiaram estavam presas no que chama de passado moribundo.
“Mas há outra versão, na qual o público representa a juventude e a esperança, e Dylan se fechava atrás de uma parede de ruído elétrico, trancando-se em uma cidadela de riqueza e poder – quando Beatles e Rolling Stones dominavam o mundo -, abandonando o idealismo e a esperança e se vendendo para a máquina de produzir estrelas.”
Por essa versão, continua o autor, os festivais de Newport eram encontros idealistas e comunitários, que nutriam a contracultura em florescimento, os ensaios para Woodstock e o Verão do Amor, e os peregrinos que vaiavam não estavam rejeitando esse futuro; tentavam protegê-lo. “Por mais patético que seja dividir a história em segmentos decimais precisos, a década de 1960 foi um período de reviravolta dramática”, escreve.
Em meio a assassinatos de políticos, guerra do Vietnã e luta pelos direitos civis, o autor de Blowin’ in the Wind iniciou uma nova era na música. Só que de um jeito particular: “Nas simplificações da lenda e da retrospectiva, lembra-se frequentemente dele como uma voz daqueles últimos anos, e é fácil esquecer que, após um acidente de moto em 1966, ele desapareceu, parou de fazer turnês, deu poucas entrevistas e passou o resto da década fazendo discos enigmáticos que pareciam intencionalmente alheios aos eventos que explodiam nas manchetes”.
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Neofeed