RS: 1 ano da enchente, as cicatrizes visíveis e invisíveis de um dilúvio

Caminhando pelos escombros de uma cidade destruída pelas águas e em processo de reconstrução, um homem na casa dos 40 anos de idade se aproximou e começou a contar sua história e as cicatrizes que a enchente de 2024, que iniciou no final de abril no Vale do Taquari, deixou em sua vida. Desde lá, viu sua casa, construída por ele mesmo, ser danificada e, agora, vive de forma improvisada dentro de um pavilhão. A cheia deixou o construtor de casas sem lar.

Poucos metros dali, ainda em Muçum, o descanso de um casal na varanda da sua casa não demonstra como a enchente ainda abala o sentimento de quem viveu e sobreviveu à tragédia.

Em uma simples pergunta de “como fica a cabeça depois de tudo o que passaram”, a resposta não vem de forma verbal. Para a mulher, o rosto se fecha e a mão esquerda tenta esconder as lágrimas que escorrem pelos olhos. “Ainda não deixei de tomar remédio para dormir”, contou a idosa em palavras, mesmo com o corpo já tendo respondido à pergunta.

Na mesma região, mas em outras cidades, enquanto algumas vítimas afirmam pensar apenas no presente e no futuro, outras sequer conseguem reencontrar o passado, evitando visitar os escombros do que já foram suas casas.

Bairros cheios de vida e histórias deixaram de existir, restando apenas o descampado de uma terra que já não é mais de ninguém. Um ano depois, no Vale do Taquari, as marcas do dilúvio não são apenas visíveis, mas também invisíveis, nos sentimentos e na memória de quem sobreviveu.

Um construtor de casas sem lar

Perambulando pelas ruas nas proximidades da ponte Brochado da Rocha, no município de Muçum, que teve parte da estrutura destruída ainda na cheia de setembro de 2023, surge a figura de um homem de meia-idade. Ao ver que estavam fotografando uma casa parcialmente destruída e tomada por uma floresta verde, ele se aproxima.

Era o pedreiro Júlio César Frazão, de 44 anos. Perguntado sobre as marcas da tragédia, ele conta a história das cicatrizes, físicas ou não, que a cheia de maio de 2024 deixou em sua vida.

Júlio César Frazão, que é construtor de casas, hoje lamenta ter perdido a sua e conta a história das cicatrizes que a cheia de maio de 2024 deixou em sua vida | Foto: Ricardo Giusti

“Moro nesse terreno desde que nasci. Aqui nunca tinha vindo enchente e tinha três casas, uma da minha mãe, outra da minha tia e a última que eu mesmo construí há uns 5 anos. As duas primeiras foram embora. A minha é a única que ainda está aí. Lutei muito para construir. É uma casa boa, de material. Queriam derrubar, mas vou esperar para conseguir arrumar”, contou.

Dentro de casa, Frazão relata que nada sobrou. A cheia do rio Taquari levou tudo, inclusive as relações familiares do pedreiro. De lá para cá, ficou sem casa e viu seu casamento chegar ao fim. Além disso, afirma ter sofrido uma queda de altura considerável, vindo a machucar a perna e, com isso, não consegue mais trabalhar. Sem casa, sem lar e sem renda, restou a ele dormir em um pavilhão improvisado.

“Minha situação está complicada, meu rapaz. Sério mesmo. Do jeito que está, não consigo fazer nada. Minha perna também não me deixa trabalhar. Eu fico emocionado quando vejo a minha casa desse jeito. Dói no coração. Minha única esperança é conseguir arrumar e voltar para ali algum dia, nesse lugar onde nasci e me criei.”

Uma vizinha, que reside a poucas quadras dali, confirma a história do pedreiro construtor de casas que agora não tem mais lar. Conforme a idosa, alguns moradores da região – principalmente os que retornaram após a cheia – ajudam o homem com alimentos. “Todos conhecemos ele como um sujeito trabalhador, mas a enchente deixou ele assim.”

Remédio para curar a dor de lembrar

Esta mesma vizinha, chamada Lourdes Bassani Zanon, de 71 anos, e seu esposo Italino Zanon, de 77 anos, costumam aproveitar a manhã calma que só uma cidade de interior como Muçum tem a oferecer. O descanso serve também para tentar espairecer. Na casa, na qual moram há mais de 40 anos, eles recordam o número que sofreram com eventos climáticos.

“Em 2020 foi a primeira vez que alagou em casa. Entre setembro de 2023 e maio de 2024, foram outras três. Antes, nunca tinha vindo enchente aqui”, lamentou o idoso.

 Lourdes Bassani Zanon e Italino Zanon recordam as várias vezes que sofreram com com eventos climáticos | Foto: Ricardo Giusti

Os estragos consecutivos, principalmente os da cheia de 2024, ainda se refletem no orçamento da família. Pela segunda vez, Italino está pagando pela troca do forro da casa. O estrago só não foi maior pois as cheias de 2023 ensinaram uma lição para eles.

“Quando nós vimos que estava vindo algo pior, colocamos nossas coisas em uma caminhonete e saímos daqui”, completou o senhor. Durante a cheia, eles passaram cerca de 40 dias na casa da filha, em Encantado, também no Vale do Taquari.

“Mas todos os dias tentávamos vir para cá. Só que não tinha condições de morar. Estava tudo sujo. Só ficou a chaminé da churrasqueira para fora da água. Estamos tentando montar a casa só com o necessário. Algumas madeiras ainda estão tortas, mas vamos tentar de novo. Aqui em Muçum é um lugar tão calmo e acolhedor”, contou Lourdes.

A idosa relata dificuldades em conviver com as memórias daquilo que viveram em maio de 2024. Chorando, conta sobre a forma como tem lidado com as lembranças da tragédia. Segundo Lourdes, cada notícia de chuva forte e cheia fazem todos os traumas voltarem à tona.

“Você não tem ideia do quanto eu chorei. Emagreci quase 10 quilos. Não conseguia comer, só pensar em tudo o que passou. Acordava de noite por sonhar com isso. Ainda não deixei de tomar remédio para dormir. Tomo um de dia e um de noite. Sei que não é aconselhável tomar, mas é como eu tiro isso da memória. Fazer o quê?”, finalizou a moradora.

Aprender uma nova gramática

Um pouco mais ao Sul do Vale do Taquari,no bairro Navegantes, em Arroio do Meio, em meio a um cenário de zona de guerra, impõe-se um dos símbolos da resistência do povo gaúcho em meio à enchente. O restaurante Casa do Peixe, com mais de 70 anos de fundação e em sua terceira geração, ficou conhecido após uma foto do hasteamento de uma bandeira do RS em uma de suas janelas.

 Restaurante Casa do Peixe, em Arroio do Meio | Foto: Ricardo Giusti

O pavilhão gaúcho ainda está hasteado e, no andar de baixo, o restaurante voltou a funcionar. Apesar disso, reformas ainda são feitas, principalmente onde a família reside. Uma das proprietárias da Casa do Peixe, Solange Schneider, de 65 anos, conta que foi uma surpresa a repercussão da imagem feita ainda durante os trabalhos de limpeza da área atingida em maio de 2024.

 Solange Schneider e Darcísio Schneider, donos do Restaurante Casa do Peixe | Foto: Ricardo Giusti

“Quando nós colocamos a bandeira aqui, não pensávamos que fosse repercutir tanto. Até o governador (Eduardo) Leite esteve aqui quando reabrimos. Foi engraçado, pois meu filho hasteou a bandeira e um amigo do meu marido mandou a foto para uma rede social do governador e aquilo viralizou. Virou um símbolo da resistência”, recordou Solange, ao lado do marido, Darcisio Schneider, de 66 anos, conhecido na região como Picolé.

Ela lamenta ainda ter perdido muitas recordações da casa, que tem 117 anos.

“Perdemos muita história, como fotos dos meus pais. Esse assoalho aqui, por exemplo, é de quando o imóvel foi construído. Cada coisa tinha um significado e tudo foi embora com a água. Mas vamos recomeçar. A enchente me ensinou uma nova forma de gramática. Aprendi agora a só conjugar verbo no presente e no futuro. O passado foi.”

Visitar o passado

Enquanto algumas pessoas aparentam facilidade maior de seguir a vida depois de toda tragédia, outras ainda resistem. No mesmo bairro em Arroio do Meio, Lúcia Carine da Silva, de 48 anos, convive diariamente com as marcas da enchente.

Com a casa destruída, precisou se mudar para uma peça que fica nos fundos de outra casa condenada. Todos os dias ao abrir a porta do atual lar, ela vê a edificação vizinha destruída e o tronco de uma árvore que foi carregado até o terraço deste imóvel.

 Com a casa destruída, Lúcia Carine da Silva, precisou se mudar para uma peça que fica nos fundos de outra casa condenada | Foto: Ricardo Giusti

O local onde tem vivido desde então fica cerca de duas quadras de sua antiga casa. A caminhada entre um imóvel e outro tem como paisagem um bairro devastado, com dezenas de construções destruídas e entulho por todos os lados.

“Consegui alugar essa peça, mas estou procurando outra casa. Aqui chove muito e tem goteira, pois tinha mais construção em cima, que a água levou.”

Após breve conversa, ela decidiu revisitar o passado. Atravessou as duas quadras até sua antiga residência, algo havia feito apenas uma vez até então.

“Já não tinha mais coragem de descer aqui e ver a situação da casa. Desanima. Meu micro-ondas foi parar dentro do banheiro e está assim até agora. Aqui do lado foi meu quarto um dia. Parece que largaram uma bomba aqui.”

Limpeza onde agora é terra de ninguém

As imagens angustiantes do helicóptero com a corda esticada para tentar salvar uma pessoa no telhado de sua própria casa, rodeada pelas águas do rio Taquari, rodaram o mundo. A mesma sensação pode ser sentida ao visitar a localidade de Passo de Estrela, em Cruzeiro do Sul, onde a cena foi registrada.

Um bairro inteiro, antes repleto de vida, com centenas de casas, estabelecimentos comerciais, posto de saúde e muito mais, viu a vida acabar e tornar-se terra de ninguém.

 

Cidade de Cruzeiro do Sul um ano após enchente de 2024 | Foto: Ricardo Giusti

O trabalho de limpeza do bairro se iniciou em fevereiro e faz parte das ações do Plano Rio Grande para a construção de um Novo Passo de Estrela, desta vez em local longe das ameaças de cheia. O espaço ficará em uma área adquirida pelo governo do Estado no atual bairro Cascata, onde foram construídas 30 casas temporárias para famílias atingidas.

Ao todo, o terreno deverá receber 220 novas unidades residenciais, além de infraestrutura pública, como escola e unidade de saúde. Já o local onde ficava o bairro Passo de Estrela receberá um parque linear, já que não poderá mais receber residências. A Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Metropolitano, chefiada no momento pelo ex-prefeito de Lajeado Marcelo Caumo, está à frente do projeto.

Enquanto isso, o fim do bairro se reflete também na vida de moradores dos arredores. Na vila Zwirtes, a comerciante Vanessa de Jesus, de 43 anos, conhecida como Moa, relata que a destruição e limpeza do Passo de Estrela causou também a redução do movimento na região, que fica na metade do caminho até o Centro de Cruzeiro do Sul.

“Aqui já não passa mais ônibus com tanta frequência. Antes, como tinha mais demanda, era de meia em meia hora. Agora temos que esperar no sol e na chuva. Como eu tenho loja aqui, ficou bem difícil sem os vizinhos. Meus clientes foram para outras cidades ou, infelizmente, faleceram na enchente.”

O trauma segue vivo desde a primeira tragédia enfrentada na região, em setembro de 2023. Desde então, relata sentir o coração bater mais forte em eventos climáticos com potencial de perigo.

“Só quem viveu e conviveu com a realidade que passamos vai me entender. Quando chove, logo corremos para olhar os milímetros. Quando voltamos, depois da cheia, era muita lama por tudo. A minha casa ficou submersa, mas agradeço por ainda ter um lar. Vamos lutar para construir, de novo, alguma coisa.”

Apesar dessa vontade de reconstruir, há o medo de viver uma nova catástrofe climática. “Nós perdemos tudo. Estamos vivendo do básico. Tudo o que construímos, com móveis planejados, já havíamos perdido em setembro de 2023. Desde então, não comprei mais quase nada. Nem roupeiro tenho em casa e nem quero. Não adianta comprar tudo isso e perder mais uma vez na próxima enchente. Do jeito que está, cada vez tem vindo uma pior”, salientou.

Desafios no uso das áreas atingidas, entre realocações e outros impasses

A situação das áreas atingidas pela cheia também é apontada como um dos principais desafios do pós-tragédia pela prefeita de Lajeado, Gláucia Schumacher. Assim como o parque linear que deverá ser construído onde antes ficava o bairro Passo de Estrela, em Cruzeiro do Sul, a maior cidade do Vale do Taquari também precisará criar um zoneamento resiliente na orla, principalmente nos pontos onde a cidade foi mais atingida, como nos bairros Centro e Conservas.

“Após a realocação das famílias, contratamos um estudo para ver como ficará a nova configuração da cidade. Sempre vivemos com enchentes, mas as casas permaneciam. Desta vez foi diferente. Nestas zonas, que chamam de zona de arraste, não poderão mais receber casas. Este estudo vai indicar onde isso vai acontecer, o que vamos fazer com essas áreas e como que vamos ter recursos para fazer isso. São desafios que ainda vão permanecer por longo tempo”, apontou.

Gláucia reforça que a definição para essa situação das zonas de arraste deverá ser feita de forma regional, envolvendo todos os municípios do Vale do Taquari que tiveram registro de situações semelhantes.

“É uma demanda de todos e que precisa de recursos volumosos. O pedido de casas foi feito individualmente, mas para a aquisição dessas áreas, para fazer parques e para que as famílias não voltem a ocupá-las, trataremos dessa demanda de forma regional”, completou a prefeita.

Esta questão acompanha outro desafio citado pela gestora, que é a habitação. Ela conta que, apenas em Lajeado, 500 casas foram perdidas.

“Essas pessoas estão em aluguel social, pagos pela prefeitura. Temos vários programas federais, estaduais e até privados correndo, mas efetivamente nenhuma casa foi construída. Então, temos todo esse movimento de finalização de casas, de realocação dessas famílias para outros territórios. E tudo isso precisa também de acompanhamento de assistência social e outras áreas da prefeitura, como forma de se preocupar com o futuro”, falou.

A necessidade de realocar famílias, tirando-as de seus imóveis e encaminhado para outros bairros, faz aparecer situações atípicas e com potencial de transtornos burocráticos. Um destes casos acontece com Marcos Trentini, de 59 anos, que mora na rua Osvaldo Aranha, no Centro de Lajeado.

Ele reside em uma casa que fica nos fundos de um terreno que pertenceu, originalmente, ao avô. Seu lar só não foi arrastado pela forte correnteza do rio Taquari pois a casa centenária e robusta que fica na frente do terreno, onde morava a irmã, “segurou” o ímpeto da água em arrastar tudo pelo caminho.

 Marcos Trentini, de 59 anos, mora no Centro de Lajeado. Seu lar resistiu às águas | Foto: Ricardo Giusti

De salvação, o casarão histórico passou a ser o pivô de uma possível remoção compulsória de Marcos do local onde mora. Isso porque, segundo ele, a irmã foi beneficiada no Programa Compra Assistida. Entretanto, para receber um novo imóvel de até R$ 200 mil, ela precisará entregar todo o terreno para o governo. Caso isso aconteça, mesmo morando em outra casa no mesmo local, ele precisará deixar a residência.

“Deram o casarão como perdido depois da enchente. Essa casa já existia quando meu avô comprou o terreno, mas como só tem uma escritura, só a minha irmã foi beneficiada. Até tentamos fazer a divisão da área para que ambos pudessem ser beneficiados, mas acho que não vão aceitar”, lamentou o homem.

“Na minha casa, pelo menos deu para voltar a morar. Consegui colocar novas telhas e pintar de novo. Mas muitos vizinhos nem voltaram para cá. A minha mulher, por exemplo, entrou em depressão e toma remédio até hoje. Quando ela tenta parar, volta a sofrer com os traumas e precisa voltar para a medicação”, finalizou.

O caminho da cheia no Rio Grande do Sul

O drama do Vale do Taquari pôde ser sintetizado na capa do Correio do Povo no dia 2 de maio de 2024. A chamada “Dilúvio”, acompanhada de uma imagem da cheia na região tendo a ponte entre Lajeado e Estrela como foco, evidenciava o drama que as cidades voltavam a viver menos de nove meses depois da tragédia de setembro de 2023.

Além disso, aquela cena mostrava o que ainda estaria por vir, quando o leito do Taquari desaguasse em outros rios até chegar no Guaíba, em Porto Alegre.

 Cidade de Roca Sales no RS, um ano após a enchente de maio de 2024 | Foto: Ricardo Giusti

Apesar disso, o drama iniciou dias antes. Mais precisamente no sábado, 27 de abril de 2024. Nessa data, começou a chover forte em quase todo o RS. A chuva forte em excesso na Serra, onde nasce o rio das Antas, que é afluente do rio Taquari, fez com que a cheia atingisse níveis históricos ao chegar no vale. Além disso, a precipitação demasiada provocou deslizamentos em diversas áreas de encosta na Serra, na região dos Vales e na região Central.

Em um primeiro momento, as cidades mais atingidas foram as do Vale do Rio Pardo, como Santa Cruz do Sul, Vera Cruz e Candelária, onde foram registradas as primeiras imagens de casas submersa. Nos dias subsequentes, altos volumes de chuva seguiram sendo registrados, aumentando o número de casas alagadas ou submersas. Na segunda, o nível alto de rios e o deslizamento em algumas áreas provoca as primeiras interdições de rodovias federais.

Na terça-feira, dia 30 de abril, a situação se agrava rapidamente, com o RS contabilizando os primeiros mortos, feridos e desaparecidos da tragédia climática que viria ser a maior da história do Estado. No dia 1º de maio, o número de mortos já subiu para 10, seguido de outras 21 pessoas desaparecidas e 4,5 mil desalojados, principalmente no Vale do Taquari. O próprio governador faz um apelo para que a população de 48 cidades evacuasse áreas de risco.

Em 2 de maio, quinta-feira, o número de vítimas fatais disparou para 29, com outras 60 pessoas desaparecidas. Mais de 15 mil já estavam fora de casa. Pontes e rodovias estavam sendo destruídas. Famílias inteiras soterradas ou levadas pela força das águas. Todo o drama da cheia histórica estava a caminho de Porto Alegre e da região Metropolitana. (Correio do Povo)

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