Camundongos criam mapas mentais, como humanos, revela estudo integrado pela UFSC

Um estudo integrado pelo professor Maurício Girardi Schappo, do Departamento de Física da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), revelou, por meio de testes experimentais, que, assim como os humanos, os camundongos são capazes de criar mapas mentais sem utilizar referências visuais. 

 

Segundo o periódico internacional da área de biologia eLife, em que a pesquisa foi publicada em novembro de 2024, o registro da capacidade dos animais de construir mapas cognitivos é “algo raramente, ou nunca, relatado fora da literatura sobre seres humanos”. A revista ainda classificou o trabalho como “fundamental” para o avanço de campos como biologia, neurociência e psicologia cognitiva.

 

O estudo foi desenvolvido em colaboração com pesquisadores Leonard Maler, André Longtin e Jean-Claude Béïque, e com a aluna de doutorado Jiayun Xu, do Center for Neural Dynamics and Artificial Intelligence da Universidade de Ottawa, no Canadá.

 

Segundo o professor Schappo, historicamente, os humanos tendem a se enxergar como se estivessem em uma posição privilegiada tanto dentro do universo, quanto dentre as diferentes espécies de animais. “Há séculos, a ciência vem desconstruindo essa ideia, mas nas últimas décadas começamos a ter melhores ferramentas para desconstruí-la”, diz.

 

 

A construção cognitiva da localização espacial 

 

“Nós, humanos, representamos o mundo ao nosso redor através de um ‘mapa cognitivo’: é como uma bússola que nos ajuda a tomar atalhos que nunca exploramos entre caminhos conhecidos. E conseguimos construir esse mapa involuntariamente, mesmo sem receber nenhum tipo de ‘indicação’ do mundo à nossa volta”, explica Schappo.

 

Em outras palavras, imagine que você precise ir ao mercado, mas não sabe onde ele fica. Mesmo vendado, você pode sair na rua explorando até que, eventualmente, consiga encontrar um mercado e voltar para casa — isso tudo sem poder pedir informação. Na segunda vez que tentar fazer isso — ainda vendado e sem se comunicar —, vai ser um pouco mais fácil, já que o cérebro estava atento às informações geradas pelos movimentos durante a primeira tentativa: qual a direção aproximada em que estava indo, e qual a distância aproximada que se deslocou.

 

“Até onde sabíamos, os humanos eram os únicos animais capazes de ter sucesso nessa tarefa. Mas nosso experimento demonstrou que não é bem assim: camundongos também são capazes do mesmo feito”, destaca o professor.

 

Impactos do estudo na tecnologia e na inteligência artificial

 

Os resultados do estudo ajudam a entender melhor como os animais – e até nós, humanos – conseguem se orientar em diferentes ambientes, defende Schappo. Além disso, esse conhecimento pode ser útil para o desenvolvimento de novas abordagens para estudar a navegação espacial no cérebro e até para inspirar avanços em inteligência artificial e robótica, diz.

 

O professor descreve que, se tratando de cérebros, há uma escala de complexidade: o cérebro do camundongo é, de certa forma, menos complexo do que o nosso. Portanto, demonstrar que esses animais são capazes de realizar uma tarefa tão complexa dá indícios de quais são os ingredientes necessários para realizá-la.

 

“Saber o que o cérebro precisa para gerar um mapa cognitivo é a primeira etapa para podermos manipular o mapa cognitivo em tecnologias inovadoras. Por exemplo, eventualmente poderíamos tentar usar isso para melhorar sistemas de navegação autônomos em transporte público, ou propor dispositivos inteligentes que auxiliem pessoas cegas a navegar pelo ambiente”, exemplifica o professor.

 

Como os camundongos foram testados?

 

Schappo explica que, para testar a capacidade dos camundongos de construir um mapa mental apenas com informações sobre seus próprios movimentos, foi criado um labirinto com cem buracos, onde a comida dos animais podia ser escondida.

 

Assim, os camundongos foram treinados para encontrar a comida, porém com uma diferença: alguns sempre entravam no labirinto pela mesma porta, enquanto outros usavam portas diferentes a cada tentativa.

 

Ao analisar o comportamento dos animais, comprovou-se que apenas aqueles que sempre entravam pelo mesmo lugar aprendiam rapidamente onde o alimento estava. Já os que entravam por portas diferentes não conseguiam memorizar o local correto.

 

Após alterar a entrada dos camundongos treinados, os pesquisadores observaram que roedores não procuravam a comida no local onde ela estava antes, mas sim em um ponto equivalente dentro da nova configuração do labirinto. De acordo com Schappo, isso indica que os animais utilizaram uma espécie de mapa mental baseado na trajetória percorrida, e não em pontos de referência visuais.  

 

Um teste extra colaborou ainda mais para o achado: quando ensinados a procurar comida em um novo local, os camundongos foram capazes de criar atalhos entre dois pontos, algo que só é possível se houver um mapa mental interno, afirma Schappo.  

 

“Constatamos que os camundongos conseguem estimar a posição de A a partir de B, e isso também é indicado pelo TEV [Target Estimation Vector], sem precisar voltar para a entrada. Isso é impressionante, porque o experimento se dá ao longo de uma semana! Quer dizer, a última vez que o camundongo tinha recebido comida no ponto A havia sido quatro dias antes da tentativa de prova. Ou seja, o camundongo não só tem que lembrar de uma memória antiga, mas também tem que estimar a posição de A através dessa memória antiga.”

 

O uso do TEV na leitura do comportamento dos animais

 

O Target Estimation Vector (TEV), ou vetor de estimativa de alvo em português, citado pelo professor é um sistema computacional estatístico criado pelos pesquisadores com intuito de quantificar o comportamento do animal em diferentes condições, em uma tentativa de tornar as predições e análises mais precisas e reprodutíveis.

 

Schappo descreve o TEV como “a expressão da memória” dos camundongos, sendo um referencial visual e matemático do funcionamento neural dos animais que, no caso da localização espacial, está ligado à zona do cérebro chamada de hipocampo. “O hipocampo é uma estrutura fundamental para a formação de memórias. Lá, há neurônios conhecidos como ‘célula de lugar’. São células que ativam quando o animal passa por uma determinada posição”, explica Schappo.

 

Voltando ao exemplo do mercado, há neurônios, tanto no cérebro humano quanto nos dos camundongos que ativam quando se chega ao objetivo final, nesse caso no mercado. Também existem neurônios que ativam quando se vira a esquina da rua X para a rua Y e também há outros que se ativam de acordo com a direção do nosso movimento. Esses neurônios se conectam diretamente com as “células de lugar” do hipocampo. 

 

Nessa linha, o professor afirma que pode-se especular que o hipocampo integra a atividade das células de direção com a atividade das células de lugar para gerar uma memória da distância e direção de um alvo. O TEV, portanto, é como se fosse a expressão dessa memória.

 

Contudo, ele ressalta que ainda não se sabe exatamente como esses neurônios ajudam a gerar a representação espacial do ambiente. Esse é o atual tema do grupo de pesquisa NeuroFísica da UFSC, coordenado por Schappo.

 

“A relação entre o TEV, a atividade das células de lugar e a das células de direção é uma especulação. No momento, não há evidências que demonstrem essa relação. Os novos experimentos que estão sendo realizados no Canadá, no laboratório do professor Leonard Maler, onde se grava a atividade cerebral do camundongo à medida que o animal navega na arena, são uma tentativa de responder se de fato há essa relação”, conclui.

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