Tem de tudo na ótima salada de Mickey 17

Siga @radiopiranhas

O maior mérito de Mickey 17, ainda em cartaz nas salas de cinema de João Pessoa, é trazer de volta a estética das irresistíveis comédias screwball, surgidas nas telas entre as décadas de 1930 e 1940 através de filmes como Aconteceu Naquela Noite e Levada da Breca. Os personagens excêntricos, o humor ácido e rápido e o confronto entre classes renderam, mais tarde, toda uma nova leva tendo como filmes de proa as produções do diretor Blake Edwards, como A Pantera Cor-de-Rosa e Um Convidado Bem Trapalhão.

Sim, o novo filme do diretor sul-coreano Bong Joon-ho é uma comédia de exageros e é de rachar o bico com suas situações absurdas e seus personagens histriônicos. Em linhas gerais, narra uma expedição interplanetária liderada por um político radical e sua influente esposa — papeis defendidos por Mark Ruffalo e Toni Collette, bastante exagerados, como pede o roteiro. O objetivo do casal é colonizar um planeta só deles, levando na bagagem seguidores e criando, assim, uma raça “pura”, ou seja, alinhada com as ideias estapafúrdias do casal.

Nessa nave viajam também cientistas e voluntários, que se inscreveram para se submeter a experimentos, como vacinas, e testar as nocividades de ambientes desconhecidos. E, ao morrerem nesses experimentos, um novo indivíduo igualzinho é “impresso” e recebe a memória do anterior, preservada através de “backups” contínuos. É como um celular, cujo modelo novo nós atualizamos a partir do anterior. E o grupo de cientistas é um show à parte, bastante cartunesco e maluco, como reza a tradição do tipo de comédia que inspira o filme de Bong Joon-ho.

Mickey Barnes (personagem de Robert Pattinson, aqui em ótimo momento) é um desses “descartáveis”, que assinou sua inscrição sem entender direito o que estava fazendo, mas precisava a todo custo fugir de uns cobradores bem violentos. Então Mickey morre e volta diversas vezes, sempre com a contagem de “clones”: Mickey 2, Mickey 3 etc., cada um substituindo o anterior, cuja morte leva o corpo à incineração. Mas, quando Mickey 17 é impresso e colocado para funcionar, Mickey 16 ainda existe, e é a dupla — de personalidades bem distintas, como se fossem O Médico e o Monstro — quem vai dar combustível para o filme.

Mickey 17 bebe do screwball e lembra bastante Blake Edwards e também Charles Chaplin, sobretudo em suas críticas nem um pouco veladas à sociedade da primeira metade do século passado (vide Tempos Modernos e O Grande Ditador), mas é uma ficção científica com naves, planetas diferentes e criaturas estranhas (quem conhece a filmografia do diretor, sabe que ele é chegado a “monstros”, vide Okja e O Hospedeiro), e que funcionam como um contraditório genérico ao líder da expedição. Esse casamento de ficção com comédia lembra muito Brazil — O Filme, mas as comparações com Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick, têm sido praticamente unânimes.

Aqui eu paro para comentar duas coisas fundamentais que o leitor precisa saber antes de assistir ao filme: Mickey 17 foi bancado pelo estúdio norte-americano Warner Bros., tem Brad Pitt como um dos produtores e, embora Bong Joon-ho tenha evitado comparações, o personagem de Mark Ruffalo tem todos os jeitos e trejeitos de Donald Trump — seus seguidores usam bonés (vermelhos) e até um tiro de raspão no rosto o personagem leva, numa clara alusão ao atentado sofrido pelo atual presidente dos EUA e que lhe arrancou parte da orelha, quando estava em campanha, em setembro do ano passado.

Há muito de crítica social em Mickey 17, críticas extraídas da sociedade atual, de pessoas que seguem determinado projeto político às cegas, acreditando em discursos mirabolantes que incluem destruição em massa — há várias leituras para as criaturas que habitam o planeta que a expedição pretende colonizar: vai desde a clássica tomada de território por parte do homem branco colonizador até supostas metáforas do governo Trump em relação à deportação de imigrantes.

Mickey 17, enfim, é filme criativo, inteligente e necessário, mas nada perto do arrojo cinematográfico de Parasita, obra–prima que venceu quatro prêmios Oscar, entre eles Melhor Filme do ano, Melhor Direção e Melhor Roteiro Original, trindade que atesta a qualidade superior de um filme, raramente entregue, juntas, assim, a uma produção cinematográfica.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 25 de março de 2025.

source
Fonte

A União

Adicionar aos favoritos o Link permanente.