Experiência de palco

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“Seu pai e sua mãe sabem que você anda metida com comunistas?”, perguntou Daura Santiago Rangel, então diretora do Liceu Paraibano, na capital, à jovem estudante e aspirante a atriz Zezita Matos. A ação da artista junto às Ligas Camponesas, em plena Ditadura Militar, nunca foi ocultada de sua família — pelo contrário. Seu Manoel, seu pai, tinha orgulho do ativismo da filha. A primeira-dama do teatro paraibano traz essa e outras “confissões” na série O Segredo Delas, que estreia na próxima quinta-feira (27), no catálogo da plataforma Itaú Cultural Play, com acesso gratuito. Ela faz coro a outras nove colegas, que compartilham com a apresentadora Virginia Cavendish suas experiências nos palcos.

A série documental começou ser formatada em 2021, tomando o depoimento de atrizes com mais de 65 anos de idade, de diferentes estados. Virginia também produz e dirige o programa, em parceria com Daguito Rodrigues. Além de Zezita, integram o projeto Zezé Motta, Ana Lúcia Torre, Suely Franco, Araci Esteves, Miriam Mehler, Walderez de Barros, Guida Vianna, Prazeres Barbosa e Joana Fomm — cada uma será tema de um dos 10 episódios, disponibilizados na íntegra em uma data especial: 27 de março é o Dia Mundial do Teatro. O acesso à Itaú Cultural Play é gratuito, no site (www.itauculturalplay.com.br), nas smart TVs Samsung, LG e Apple TV, nos aplicativos para dispositivos móveis (Android e iOS) e Chromecast.

Em conversa com A União, Virginia explica que esta foi a sua primeira experiência com direção de documentário e que, apesar de ter aprendido muito com as atrizes durante as entrevistas, teve de fazer uma extensa pesquisa sobre cada uma das artistas. Com algumas chegou a contracenar, como Walderez de Barros, na minissérie Dona Flor e Seus Dois Maridos (1998).

“O programa fala do processo criativo, das experiências de vida e não só ‘fez essa peça, fez aquela outra peça’. É muito mais sobre ‘abrir o zíper’ e ver por dentro, como as engrenagens de cada uma dessas mulheres funcionam, realizando trabalhos artísticos com tanto sucesso. Elas atravessaram décadas e continuam ativas até hoje“, detalha.

O interesse de Virgínia sobre a “fórmula” delas nos palcos também é pessoal. Entre os métodos que mais chamaram a atenção da apresentadora, está o de Ana Lúcia Torre: quando tem dificuldades para decorar o texto, ela cria uma música a partir de uma associação silábica: a frase “eu gosto de vermelho”, por exemplo, vira uma “cantiga”: “go-ve, go-ve”.

“Tinha curiosidade de saber como elas se preparam para esses momentos difíceis. No filme Lisbela e o Prisioneiro (2003), tivemos que fechar uma estrada para fazer a cena de despedida de Inaura [personagem de Virginia] e Leléu [Selton Mello]. Havia dois quilômetros de carros e caminhões esperando eu terminar e eu tinha que estar lá, pronta, inteira”, recorda.

Natural de Recife, Virginia acumula experiências de sucesso no cinema e na televisão, mas, assim como suas entrevistadas, deu seus primeiros passos nos teatros pernambucanos. Sua primeira experiência profissional, “fora do ninho”,  foi justamente na Paraíba, integrando o elenco da montagem da peça Fêmeas, texto de Lourdes Ramalho dirigido por Moncho Rodriguez.

“Trabalhei com Eleonora Montenegro, Melânia Silveira e Buda Lira, pessoas que moram no meu coração até hoje. Aprendi muito com eles na época. Eu fiquei morando seis meses em Campina Grande e a gente esteve em cartaz por, no mínimo, duas semanas em João Pessoa. Eu era muito jovem, tinha 19 anos. Mas foi uma temporada maravilhosa”, diz

A entrevista com Zezita foi a primeira a ser gravada — ainda em contexto pandêmico, com a equipe paramentada. Virginia aterrissou em terras paraibanas mais de 20 anos depois de sua experiência com a minissérie (depois filme) O Auto da Compadecida (1999), filmada em Cabaceiras.

“Eu fiquei muito emocionada ao conhecer a experiência dela fazendo teatro educativo em caminhões e o encontro dela com o educador Paulo Freire, nos anos 1960. Ela contou também como foi ser a primeira mulher a dirigir o Teatro Santa Roza, abrindo as portas para toda a população e não só para a elite. Tudo isso só fez crescer a minha admiração pela atriz”, pontua.  

A  casa e a cozinha

Zezita não faz mistério: devido à ausência de cursos de teatro no início da carreira, no fim dos anos 1950, sua formação se deu por meio de sua experiência. Mesmo quando precisa dedicar-se a projetos audiovisuais ou quando tem de cessar temporariamente suas participações por motivos de saúde, segue tendo a dramaturgia como sustentáculo.

“Todo esse meu aprendizado se deu com os meus diretores. E isso foi muito importante: com cada um deles fui lendo, conquistando e fazendo. Depois, ingressei nas graduações em Letras e Pedagogia, na universidade, mas isso enquanto continuava como atriz. Hoje tenho 82 anos, sendo 67 no teatro —  e sem parar!”, informa.

Quando questionada sobre que cena ou peça foi a mais difícil de realizar ao longo de sua trajetória nas artes, Zezita diz que toda empreitada tem seu obstáculo particular. Como atriz que gosta de estudar profundamente o roteiro e o perfil da personagem, ela diz que nunca pode desligar-se dos detalhes inerentes ao trabalho em que está imersa.

“Minhas influências vêm do texto, da pesquisa e dos debates com o elenco. Essas conversas são muito importantes, além da leitura do texto e do contexto. Em cada espetáculo, a gente vai para uma época, para um local determinado, mas a inspiração está nas falas que você vai dar, naquilo que você consegue captar e como você consegue interagir com essas palavras”, indica.

Em sua entrevista para O Segredo Delas, Zezita destacou sua participação na peça As Velhas, de Lourdes Ramalho, lançada no fim dos anos 1980. A paraibana rememorou a morte do diretor Ângelo Nunes, em meio à montagem do espetáculo. Abalada, a equipe teve de se recompor e retomar o processo, sob a regência de Duílio Cunha, antes assistente de direção.

“Ficamos oito anos em cartaz e durante a minha carreira foi o espetáculo mais longo que fiz. Andamos o Brasil inteiro, mas, na Paraíba, estivemos mais tempo. Ficamos muito feridos, machucados com o ‘desaparecimento’ de Ângelo. Montar As Velhas acabou significando um presente nosso para ele. E ela faz parte da história do teatro paraibano”, garante.

Virginia e Zezita ressaltam a importância do teatro em suas vidas. “É a minha casa, é a minha cozinha, é onde eu estou sempre. É o lugar de pesquisa do ator. Mas não só a apresentação, como também os ensaios, a vida teatral, em turnê, pôr o pé no chão também. O teatro é uma profissão mais de artesanato do que de glamour. É, enfim, a minha base”, assinala a primeira.

“Representa muito. Penso que faz muita falta um grupo de teatro em cada escola do estado e não só para quem quer ser ator ou diretor, mas para formar plateia. Ainda é uma arte ‘de elite’, por isso precisamos levá-la a todas as comunidades: é uma forma especial de comunicar e de educar”, garante a segunda.

As duas compartilham “segredos” para atores em formação. “Trabalhar com teatro é estar numa busca eterna e, como tudo na vida, é algo perfeito e imperfeito. Então, temos de aceitar isso também, né? Aceitar que a gente um dia faz um negócio maravilhoso e que no outro dia a gente não vai fazer, por algum outro motivo externo ou interno. E está tudo bem. E o negócio é você estar lá, no palco, fazendo”, alega Virginia.

“O segredo é querer fazer, mas estudar e ler muito. Nós, nordestinos, temos que conhecer os nossos autores: como fazer um espetáculo sem ter lido Graciliano Ramos, ou Zé Lins do Rego? Tudo está entrelaçado”, conclui Zezita.  

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 25 de março de 2025.

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A União

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