Comédia de erros e metáforas

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A graduação em Agronomia, na juventude, foi apenas pró-forma. Vânia Perazzo sempre soube que seu futuro estaria no cinema, tanto à frente das câmeras, quanto na formação de profissionais da comunicação e do audiovisual. Celebrando mais de 40 anos de carreira nesse segmento, a cineasta apresenta amanhã, às 19h, em João Pessoa, a ficção O que os Olhos Não Veem, seu mais recente trabalho. Esta será a atração deste mês do Cineclube O Homem de Areia, da Fundação Casa de José Américo. Excepcionalmente, a exibição ocorrerá no auditório do Sesc Cabo Branco, com entrada franca.

Vencedor de prêmio de melhor roteiro no Fest Aruanda, em 2019, o filme acompanha as desventuras de Áurea (Verônica Cavalcanti) e Shyrleyde (Mirtthya Guimarães): a primeira desconfia que o marido é infiel e a segunda, namorada de um homem casado, tenta fazer com ele desmanche seu casamento. As duas encontram-se no meio de uma apresentação teatral, que lhes “sequestra” para o centro do palco: lá descobrem que além da má sorte no amor, compartilham a mesma psicóloga, a mesma vidente e o mesmo detetive, contratado para investigar seus pares. Mas, como numa boa comédia de erros, as similitudes não param por aí…

Foi justamente por meio de um teatro que Vânia Perazzo conheceu o cinema — o Minerva, em Areia, sua terra natal, no Brejo paraibano. Ainda criança, era levada por seu avô, Américo, para assistir aos filmes por lá. Algumas de suas lembranças mais antigas também a transportam para as reprises de comédias clássicas, como as dos Três Patetas e dos Irmãos Marx.

Numa delas, viu uma cena “aterradora”: um dos atores, que dormia em uma floresta, acendia uma vela em cima daquilo que achava ser uma pedra — na verdade, era uma tartaruga, que começou a andar com o objeto pela tela. Com medo, a menina chorou e encerrou, por hora, sua aventura na sétima arte.

Como explicou em entrevista para A União, a proximidade com o Campus 2 da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em Areia, fez com que ela buscasse o diploma de agrônoma — caminho percorrido por outras mulheres locais, como alternativa à impossibilidade de estudar fora.

“Foi o destino naquele momento. Mas eu não tinha nenhuma atração, não. Fui direcionada para a Botânica e dizem que é uma área mais ‘feminina’, digamos assim. Anos depois, formada, fui professora na Escola Nacional de Agronomia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Ena-UFRJ) e trabalhei como pesquisadora no Jardim Botânico, na capital fluminense”, rememora.

Cinema em Paris 

A proximidade com a sétima arte, ainda em seu município de origem, também lhe trouxe para perto de eventos locais, como o Festival de Artes de Areia, e do maestro Pedro Santos, que organizava um estágio em cinema junto ao Núcleo de Documentação Cinematográfica da UFPB (Nudoc), em João Pessoa, em parceria com a associação Ateliers Varan, de Paris.

“Viajamos para a França eu, Bertrand Lira e Newton Araújo Júnior. Meus primeiros filmes foram É Romão Praqui, Romão Pracolá, sobre o tocador de berimbau de mesmo nome, e Celso Depois do Milagre, com o economista Celso Furtado, auto-exilado em Paris, por conta da Ditadura no Brasil. Foram rodados em 1982, em Super 8”, rememora.

Terminado o estágio, Vânia decidiu continuar em Paris e ingressar no doutorado em Cinema, na Universidade de Paris. Nas décadas seguintes, oscilou entre a Botânica e os filmes, até decidir-se pela segunda opção.

Quando retornou à Paraíba, no final da década de 1980, filmou Carnaval Sujo, em Areia. Em seguida, produziu mais dois documentários. “Foram O Reino de Deus e O Palácio do Riso. Parti para fazer a montagem na Bulgária, já que era um convênio nosso com eles. Foi quando eu conheci Ivan Hlebarov, crítico de cinema: casamos e ele veio morar aqui. Fundamos a Minerva Filmes, nossa produtora, mas ele faleceu em 2017. Ivan era o meu anjo da guarda e o meu grande incentivador”, detalha.

Em 1996, professora na UFPB, transferiu-se para o extinto Departamento de Comunicação (Decom) e também foi coordenadora do Nudoc. Chegou a sair da instituição em 2018, mas teve de voltar ao trabalho para completar o tempo de contribuição necessário para a aposentadoria: encerrou seu vínculo com a instituição em 2024.

“Essa volta foi um prazer enorme. É muito importante repassar esses conhecimentos e a nossa experiência. Hoje você tem o digital, que facilita muito, né? Mas naquela época, tínhamos que filmar em película, ou em Super 8, ou em 16mm. Fora que não tinha circuito para a exibição desses filmes que fiz”, compara.

Filme com camadas

Falando sobre a experiência das realizadoras no cinema, Vânia afirma que o número de mulheres à frente das câmeras cresceu muito em relação ao começo de sua carreira; naquela época, a participação feminina era muito maior na montagem do que em outros segmentos técnicos.

“As dificuldades sempre atingiam a todos os cineastas independentes, de todos os gêneros. Mas na Bulgária, por exemplo, que era um país comunista e com discurso de valorização de todas as classes sociais, havia pouquíssimas mulheres diretoras de cinema. Essa parte sempre ficava com o homem. A luta é grande, mas eu tenho esperança de que isso mude e se cristalize na sociedade, com o tempo”, almeja.

Uma das primeiras experiências de Vânia com o cinema de ficção veio com a direção de Por Trinta Dinheiros, longa-metragem de 2005. O processo de produção e pós–produção desse projeto foi longo, devido a dificuldades para captação de recursos. Comentando sobre O Que os Olhos Não Veem, em exibição amanhã, no Sesc, a diretora o define como essencialmente metafórico.

É um filme em camadas, porque lá no fundo tem uma mensagem que nem todo mundo capta. Elas percorrem a cidade consultando ‘profissionais’, que na verdade não são nada sérios e encontram até personagens clássicos, como o Homem-Aranha e Sherlock Holmes, arquétipos que povoam o nosso mundo”, informa.

Mesmo aposentada das salas de aula, Vânia organiza uma nova empreitada como realizadora: a cinebiografia da atriz Zezita Matos, atualmente em pré-produção por sua Minerva Filmes. Ela também aguarda o resultado da restauração de seus curtas- -metragens O Reino de Deus e O Palácio do Riso, feita em parceria com a ONG Cinelimite.

Segundo a areiense, o cinema local vive um momento auspicioso. “A gente tem que aproveitar a ocasião. Tem um número enorme de jovens querendo trabalhar com audiovisual e eu mesma tive alunos muito promissores, tanto como diretores, quanto como roteiristas. Acho que o futuro fica para esse pessoal, porque eu já sou idosa, embora não me sinta assim”, conclui.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 18 de março de 2025.

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A União

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