A casa da Palmeira

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Nesse calorão do nosso meio-dia, saí de uma sala fria, gelada, do Tribunal de Justiça, para, sufocado, sentir a falta imediata, no edifício vizinho da OAB, do gabinete do antigo presidente da Associação dos Procuradores, Assis Camelo, onde íamos respirar, anos atrás, o clima conterrâneo de Alagoa Nova. Com o ar refrigerado no mesmo grau, o calor da estima fazia a diferença.

Mas dou com o olhar numa casa de alpendre ao lado, de porta e janelas fechadas e que de repente se alegra, atraente, de jovens rostos, e que rostos, à janela. Era a casa de Lúcia Braga, que ela descreve de um modo, em suas memórias, e o antigo revisor de A União que eu fui via de outro, em suas idas e vindas a caminho de casa, em Jaguaribe.

Li ou ouvi dizer que a vida começa a ter real encanto a partir do instante em que se constitui em memória. Os instantes felizes só chegam a ser felizes muito tempo depois. Vejamos o que dona Lúcia, escreveu já exilada da militância política com o marido Wilson Braga:

“Eu já era mocinha de 15 anos e estava com Tereza e as Menezes debruçada numa das janelas da Palmeira, 73, quando três moços vestidos  a caráter, com violão e guitarra aos ombros, e usando sombreiros tipicamente mexicanos param na calçada e nos cumprimentam, galanteadores:

— Que belas muchachas! Por Diós!

Agradecemos as palavras gentis e indagamos curiosas: “Quem são vocês?”

— Somos artistas, El Trio los Panchos, e vamos hacer una presentación en la Rádio Tabajara — disseram os três numa só voz. E acrescentaram: — Podreremos cantar para usteds?

— Gostaremos muito — respondemos vibrando.

E foi assim que assistimos a Los Panchos numa pré-estréia sui generis.”

A Rádio Tabajara dava para a janela dessas meninas, a janela da casa da Rua da Palmeira. Exercia verdadeiro fascínio  na vida de Lúcia e das amigas entre crianças e adolescentes. Palco nacional, não raro internacional, com gente como Los Panchos, Agustín Lara, do outro lado da calçada das meninas. Orlando Silva, Galhardo, Silvio Caldas, nem se fala.

Quando não era isso, era a guerra. A Tabajara retransmitindo os horrores da Europa que a BBC despejava  estalando por entre o filó amarelado do mostrador do rádio. Lúcia e as meninas ouvindo, vendo tudo da escada  da rádio, onde sentavam para brincar, esperar os tipos passarem na calçada, como o jovem, sempre empertigado, Humberto Lucena ou, a algumas milhas dali, fantasmas, Hitler, Churchill, as suas tropas, seus bombardeios e as nuvens negras que a narrativa mesclava de fagulhas e  de jorros de fogo.

Vem o marido, governador, e põe abaixo o castelo que a mulher reconstrói nas memórias, todo um mundo supervalorizado pela saudade e pela fama que o tempo foi deixando sentar, moldar, como um pó benéfico além do tempo.

Tempos felizes, diz Lúcia, depois de primeira-dama, deputada, protagonista de uma obra social que é apenas um dos capítulos.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 16 de março de 2025.

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A União

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