Dia dos Direitos Humanos: como Sorocaba deixou de ser o maior polo manicomial do Brasil e virou exemplo seguido por outras cidades


Ao longo dos últimos seis meses, o g1 se aprofundou na história de hospitais para falar sobre a luta de familiares, políticos, entidades como o Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba (Flamas) e outros órgãos públicos para garantir os direitos daqueles até então “esquecidos” na sociedade. Como Sorocaba deixou de ser o maior polo manicomial do Brasil
Há dez anos, Sorocaba (SP) deu início a um processo que levou ao fim de um ciclo que muitos moradores querem apagar da memória. O fechamento dos quatros hospitais psiquiátricos tirou da cidade o título de maior polo manicomial do Brasil.
📲 Participe do canal do g1 Sorocaba e Jundiaí no WhatsApp
O que antes eram locais que carregavam marcas de abandono e descaso, hoje se resume a ruínas. Nos últimos seis meses, o g1 se aprofundou nas histórias destes hospitais para falar, no Dia Internacional dos Direitos Humanos, celebrado nesta terça-feira (10), sobre a luta de familiares, políticos, entidades como o Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba (Flamas) e outros órgãos públicos para garantir o direito daqueles até então “esquecidos” na sociedade.
Antigo necrotério do Hospital Vera Cruz, em Sorocaba (SP); cidade chegou a ter mais óbitos de que altas hospitalares
Marcel Scinocca/g1
Luta antimanicomial
A luta antimanicomial começou em 1980, mas foi só no século seguinte, em 2001, que uma lei proibiu a internação de pacientes em hospitais psiquiátricos. Apesar do progresso, demorou para que tudo isso saísse do papel.
O processo de fechamento desses hospitais em Sorocaba começou com a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o Ministério Público, a Prefeitura de Sorocaba, o Ministério Público Federal, a União e o Estado de São Paulo.
“A situação dos hospitais psiquiátricos de Sorocaba era desoladora. Quem pudesse percorrer esses hospitais via que, na verdade, era um depósito de dependentes químicos, de doentes com problemas psíquicos graves, misturando tudo, dando um mau trato. Transformou-se em uma situação necessária de intervenção”, lembra Antonio Carlos Pannunzio, prefeito de Sorocaba na época em que o TAC foi assinado e quando os primeiros hospitais foram fechados.
Ex-prefeito de Sorocaba (SP) Antonio Carlos Pannunzio
Marcel Scinocca/g1
O documento foi assinado em dezembro de 2012. O Hospital Jardim das Acácias foi o primeiro a ser fechado, quando deixou de receber pacientes em fevereiro de 2014. Cinco meses depois, foi a vez do Hospital Mental, que ficava na Avenida São Paulo. O penúltimo a encerrar as atividades foi o Hospital Teixeira Lima, em 2017.
Em todos esses hospitais, os pacientes que não receberam alta foram enviados para o Polo de Desinstitucionalização Vera Cruz, que só foi fechado em março de 2018. Foi só depois de todas essas unidades serem fechadas que Sorocaba deixou de ser o maior polo manicomial do Brasil.
Até 2013, o município contava com o maior número de leitos psiquiátricos por habitantes do Brasil. Quando o processo de desinstitucionalização começou, 1.128 pessoas estavam internadas nos hospitais psiquiátricos da cidade. Com o fechamento do Vera Cruz, em 2018, o número foi a zero.
“O cenário que se via nesses hospitais psiquiátricos, principalmente na região de Sorocaba, lotado de pessoas, em situações extremas, em situações de sujicidade, de supressão de cidadania, de direitos, de tudo quanto é tipo. Aquilo não tratava ninguém. Tinha pacientes ali que não eram pacientes, eram moradores dos hospitais psiquiátricos”, afirma a promotora Cristina Palma, que ajudou no processo atuando pelo Ministério Público.
Promotora de Sorocaba (SP) Cristina Palma
Marcel Scinocca/g1
De fato, quando o Hospital Vera Cruz foi fechado, quatro pacientes estavam no local. Relembre a situação de cada um:
Adalgiza Siqueira da Silva, de 70 anos: estava internada no hospital havia 26 anos;
Adimael Latanzio, 50 anos: internado havia 12 anos;
Ananias Martins, 45 anos: internado havia 30 anos;
Roberto Justino da Silva, 52 anos: internado havia 16 anos.
“A gente pode dizer que é paciente quando você trata alguém. Agora, quando você aloja uma pessoa, quando você esconde, ou você deposita essa pessoa em algum lugar, ela não está sendo tratada”, reforça a promotora.
Todo o processo, desde a assinatura do TAC até o fechamento do último hospital, durou cinco anos e três meses. E a redução no número de pacientes desde o início da desinternação mostra o resultado efetivo de todo o processo.
Entrada do antigo Hospital Vera Cruz, em Sorocaba (SP)
Marcel Scinocca/g1
“Foi uma experiência exitosa. Minha impressão é que a cidade e região demoram pra fazer isso. Isso poderia ter sido feito na década de 1990, início dos anos 2000. Essa demora fez com que a situação se agravasse, o número de pacientes com cronificação se agravasse. Então, se tornou mais difícil. Mas, ainda assim, o que aconteceu foi muito bacana. Fui um entusiasta desse processo desde quando começou e ainda sou”, comenta Marcos Roberto Vieira Garcia, psicólogo e pesquisador.
“Percebeu-se que havia moradores de décadas ali. Alguns que não tinham nem seus vínculos familiares, não sabia nem mais quem era sua família. Foi um resgate, não são dos pacientes, mas um resgate de vida, de cidadania, de identidade dessas pessoas”, garante Cristina Palma.
Psicólogo e pesquisador Marcos Roberto Vieira Garcia,, de Sorocaba (SP)
Marcel Scinocca/g1
Mais mortes do que altas
Antes de todo esse processo de desinstitucionalização, a negligência aos direitos humanos era tão grande que, entre 2004 e 2011, 444 pessoas morreram nos quatro hospitais psiquiátricos de Sorocaba. Em algumas situações, inclusive, as unidades registraram mais mortes do que altas hospitalares.
“Situação de ambiente inadequado para aqueles pacientes, desde a alimentação, a questão da higiene, e, particularmente, o tratamento terapêutico que eles deveriam ter para poder, eventualmente, ser recuperados. Isso era falho demais. A consequência era isso: entrava muita gente e saía pouca gente”, comenta o ex-prefeito Pannunzio.
A questão chegou a ser objeto de estudo pelo pesquisador Marcos Roberto Garcia. “A gente sabia que tinha mais que o dobro de mortalidade – 120 % a mais – que no restante do estado. Sabíamos que a causa dessas mortes eram um tanto quanto suspeitas. Era um excesso de mortes por infarto, um excesso de mortes por pneumonia, o grande número de mortos no inverno. Eram todas sugestivas de falta de cuidado”, aponta.
“Além disso, os pacientes morriam com idade muito mais jovem que o restante do estado. A média das mortes nesses manicômios era de cerca de 40 anos, um ou outro mais de 50 anos, que é uma idade precoce para morrer, o que sugere que não havia uma idade adequada para morrer com relação às doenças físicas e também com relação às doenças mentais, porque havia tempo de internação muito alto”, acrescenta.
“Era um flagrante desrespeito, era desumano. É por isso que gerou todo esse movimento que culminou com o TAC, que foi feito em Sorocaba e que foi o precursor de fechamento de outros hospitais em outras cidades”, lembra Cristina Palma.
Santa Casa e RTs
Atualmente, a Santa Casa atende os pacientes que precisam de internação em Sorocaba, mas por um período bem menor, segundo o coordenador de psiquiatria do hospital, Alexandre Quelho Comandule.
“É que a gente tem um tempo de internação mais curto, entre 15 e 21 dias. Esse é o objetivo da internação. O paciente entra, a gente faz o diagnóstico, começa a medicação e tenderia dar alta com o paciente nem tão estável, para continuar o tratamento lá fora, no Caps (Centro de Atenção Psicossocial). Então, a gente já faz essa vinculação direta. É exceção o paciente ficar mais de um mês, mais de dois meses aqui”, explica.
Para os casos de menor complexidade, os atendimentos acontecem nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e nas Residências Terapêuticas (RTs).
Alexandre Quelho Comandule, coordenador de psiquiatria da Santa Casa de Sorocaba
Marcel Scinocca/g1
Situação atual dos hospitais
Dos quatro hospitais que a cidade abrigava, o que funcionava na Avenida Afonso Vergueiro deu lugar a um supermercado. O prédio onde funcionava o Teixeira Lima foi demolido e deve virar um empreendimento imobiliário.
Já o Vera Cruz é o cenário em degradação de um tempo que não deve mais voltar. São dezenas de corredores vazios que remetem a isolamento, dor e sofrimento. Um lugar onde, em muitos casos, o necrotério era a única saída.
Ruínas também definem o que restou do Hospital Mental, que abrigava exclusivamente pacientes mulheres. No local, além do vazio dos corredores e do prédio em meio ao mato, é possível encontrar documentos da instituição, com dados de pacientes e parentes dos internados.
O que restou das duas unidades segue abandonado em áreas de grande movimentação na cidade, e se tornou uma ferida na paisagem e trauma nas lembranças de muitas famílias.
Estrutura atual
De acordo com a Prefeitura de Sorocaba, 33 Unidades Básicas de Saúde (UBSs) do município e oito Centros de Atenção Psicossocial (Caps), além dos Serviços de Urgência e Emergência, atuam na área psicossocial na cidade. Os Caps registram em média 13.320 atendimentos mensais.
“Todas as UBSs de Sorocaba possuem uma equipe de saúde mental multidisciplinar de referência para atendimentos e acompanhamento, bem como psiquiatras”, garante.
A cidade também conta com uma Unidade de Acolhimento Infantojuvenil (UAI) e 34 Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs). São nove psiquiatras que atendem nas UBSs, além de 29 psiquiatras nos Caps da cidade. A Santa Casa tem 16 leitos exclusivamente para saúde mental.
Veja mais imagens dos antigos hospitais psiquiátricos de Sorocaba
Veja mais notícias da região no g1 Sorocaba e Jundiaí
VÍDEOS: assista às reportagens da TV TEM
Adicionar aos favoritos o Link permanente.