Caso Ágatha Félix: 5 anos depois, Grande Rio acumula outras 28 mortes de menores de 12 anos vítimas de arma de fogo


Levantamento é do Fogo Cruzado a pedido da GloboNews. PM, autor do tiro que matou a menina de 8 anos, no Complexo do Alemão, vai a júri popular em novembro. Imbróglio judicial prejudica aplicação de Lei Ágatha
“Eu tô bem emotiva. Tenho vivido anos bem intensos. A cada dia tento ser forte, firme, porque eu sou uma pessoa espiritualizada. Eu creio muito em Deus e sei onde ela está. É isso que me mantém viva, acesa, para eu poder continuar seguindo.”
O relato de Vanessa Sales Félix resume o sentimento de uma mãe, 5 anos após presenciar a morte trágica da própria filha. Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, foi atingida por um tiro de fuzil nas costas, na noite do dia 20 de setembro de 2019, dentro de uma Kombi, no Morro da Fazendinha, no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro.
A morte de Ágatha Félix não é um caso isolado. Dados do Instituto Fogo Cruzado, levantados a pedido da Globonews, apontam que, do dia 21 de setembro de 2019 até o dia 19 de setembro de 2024, outras 95 crianças menores de 12 anos foram baleadas somente na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Destas, 28 morreram e 67 ficaram feridas.
O caso mais recente foi o do menino Sandro Vasconcelos, de 8 anos, morto após ser atingido durante uma troca de tiros na comunidade Cavalo de Aço, em Senador Camará, na Zona Oeste do Rio, em maio deste ano.
“Hoje ainda não é fácil saber quantos crimes ocorreram contra crianças e adolescentes e quantos destes foram, de fato, investigados nestes últimos 5 anos. Essas investigações deveriam ocorrer não apenas para garantir justiça, mas também para permitir um diagnóstico completo dos principais fatores de risco para essa população. Somente assim seria possível uma articulação eficiente entre o MP e o Poder Executivo, capaz de gerar políticas de proteção adequadas para as crianças e adolescentes que vivem no Rio de Janeiro”, destaca Terine Coelho, coordenadora de pesquisa do Instituto Fogo Cruzado.
Ágatha Félix
Reprodução/TV Globo
Lei Ágatha
A morte de Ágatha inspirou a criação da Lei Estadual 9.180, de 2021, que assegura prioridade nas investigações de crimes contra a vida de crianças e adolescentes no Rio de Janeiro.
No entanto, o último relatório sobre o tema, divulgado em 2023 pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ), aponta que a lei não vem sendo devidamente aplicada. Seis em cada 10 inquéritos policiais relacionados a mortes de crianças e adolescentes no RJ estão pendentes, alguns há mais de 20 anos.
De 1999 a 2023, foram registrados 15.614 casos, dos quais 9.428 ainda aguardam uma solução. As investigações em aberto têm, em média, duração de 9 anos e 8 meses.
Diante dos fatos, a DPRJ moveu uma ação civil pública no ano passado contra o governo alegando o descumprimento da lei e argumentando que, passados mais de 3 anos da sanção, o estado não teria adotado medidas eficazes para assegurar o cumprimento da prioridade dos inquéritos.
Foi solicitada, dentre outros pontos, a elaboração de um plano para solucionar o problema, com medidas detalhadas para implementação da lei e a identificação dos procedimentos que apurem mortes de crianças, com a colocação de etiquetas em processos físicos, por exemplo, ou com alertas, para os processos eletrônicos.
Em sua contestação, o estado argumentou que a Lei Ágatha foi “tacitamente revogada” pela Lei Estadual 9.286 de 2021 (Lei Henry Borel), que regulamenta sobre o mesmo tema.
O estado sustentou, também, que já tem adotado ações para priorizar os inquéritos relacionados a crimes contra crianças e adolescentes. Afirmou ainda, na contestação, que a Lei Ágatha seria inconstitucional, tomando como base o Artigo 22 da Constituição Federal, alegando que “a competência para legislar sobre direito penal e processual penal é privativa da União”.
“O argumento da revogação da lei não se sustenta. O site da Alerj não menciona que essa lei está revogada e a Lei Estadual Henry Borel tem a mesma norma jurídica, que é a priorização desse tipo de investigação. Então, independentemente da lei A ou B, fato é que a norma jurídica no RJ determina que a Polícia Judiciária investigue em primeiro lugar morte de criança. É uma alegação vazia, e que, na nossa visão, mostra uma tentativa de apagamento da memória da Ágatha, que é uma menina preta, favelada, que foi morta e que, por essa razão, teve seu nome na lei”, resume o defensor público Rodrigo Azambuja, coordenador de Infância e Juventude da DPRJ.
O MPRJ se manifestou em um agravo de instrumento interposto pelo estado contra a decisão.
No parecer, o MP ressaltou a constitucionalidade da Lei Ágatha, uma vez que foi sancionada pelo próprio governador, o que em si já presumiria sua consonância com o interesse público, além de citar o Artigo 227 da Constituição, que estabelece o princípio da prioridade absoluta para Infância e Juventude. Manteve também a necessidade de um plano de ação para priorizar os inquéritos envolvendo menores.
No entanto, reconheceu que a exigência da criação de um departamento específico na estrutura administrativa (um dos pedidos da ação civil contra o estado) viola o princípio da separação dos Poderes e a discricionariedade do Executivo. O MP recomendou a exclusão dessa determinação específica, apontando que o Poder Judiciário não pode detalhar medidas administrativas dessa natureza.
O parecer aguarda análise do relator, desembargador Eduardo Antônio Klausner, desde junho do ano passado.
Em nota, a Secretaria de Estado de Polícia Civil (Sepol) informou que “é concedida absoluta prioridade em todos os procedimentos que figuram crianças e adolescentes vítimas, cuja complexidade varia de acordo com cada caso concreto”.
“A instituição reforça que desde 2010 houve uma reformulação estrutural das delegacias de homicídios, e novas metodologias foram criadas para auxiliar o trabalho policial e ampliar a eficácia do resultado final. A Sepol acrescenta que novos policiais nomeados no último concurso foram alocados nas Delegacias de Homicídios, possibilitando a retomada da capacidade investigativa das unidades com foco na elucidação de crimes e redução de índices criminais.”
Julgamento
O inquérito da Delegacia de Homicídios da Capital apontou que o tiro que acertou a menina partiu da arma do PM Rodrigo José de Matos Soares. Rodrigo foi denunciado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) em dezembro de 2019 por homicídio qualificado.
O militar foi afastado das funções, mas só começou a ser julgado em fevereiro de 2022. No dia 12 de abril do ano passado, decisão assinada pelo juiz Cariel Bezerra Patriota definiu que o réu seria submetido ao Tribunal do Júri.
O julgamento está marcado para 8 de novembro, às 11h, no plenário do júri da 1ª Vara Criminal da Comarca da Capital, no Rio.
Para Vanessa, o momento é de expectativa. “Eu espero que realmente seja feita justiça. Que ele atirou, isso foi concluído. Que ele venha a ser punido da forma que tem que ser”, desabafa.
A defesa do PM afirma que “o julgamento do policial Rodrigo em um Júri Popular trata-se de um ‘justiçamento’, e ‘justiçamento’ não é justiça”.
“Esta defesa acredita literalmente na inocência de Rodrigo José de Matos Soares e qualquer condenação será extremamente injusta, tendo em vista a pessoa dele e, principalmente, as provas que estão nos autos.”
Kombi onde Ágatha Félix estava quando foi atingida no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro
Reprodução/ TV Globo
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