A pesquisa analisou 472 vestígios botânicos carbonizados coletados em Marques de Souza
Um estudo recente publicado como capítulo de livro e intitulado “Cultivo e consumo de plantas entre os Guarani pré-coloniais do Sul do Brasil: uma contribuição a partir de vestígios carpológicos”, trouxe à luz novos dados sobre a vida dos povos Guarani que habitavam a região do Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, entre os séculos 14 e 19. O estudo é liderado pela pesquisadora Fernanda Schneider (Univates). Além dela, assinam o texto Rafael Corteletti (UFPel), Elisete Maria de Freitas (Univates), Daniel Marcelo Loponte (Conicet/Argentina), Neli Teresinha Galarce Machado (Univates).
A pesquisa, que analisou 472 vestígios botânicos carbonizados identificados no sítio arqueológico RS-T-114, revelou detalhes sobre a dieta, o cultivo e as antigas práticas sociais dos grupos Guarani. O texto faz parte do livro “20 anos de Arqueobotânica no Brasil: uma disciplina em ascensão”, organizado pelos pesquisadores do Museu Nacional Rita Scheel-Ybert, Leidiana Mota, Leonardo Azevedo, Taís Capucho, Giovana Cadorin e Mayara Lima.
A Importância do milho e a diversidade de plantas
Os vestígios carpológicos, preservados por carbonização, indicaram a presença de 13 tipos vegetais, sendo três cultivados: Zea mays (milho), Phaseolus vulgaris (feijão-comum) e Phaseolus lunatus (feijão-fava).
Outros três foram classificados como possivelmente cultivados, incluindo sementes dos gêneros Phaseolus sp. (feijões) e Manihot sp. (mandioca) e da família Cucurbitaceae (possivelmente algum tipo de melão nativo). Sete tipos de plantas silvestres também foram identificados, como Ceiba speciosa (paineira), Syagrus romanzoffiana (jerivá), Enterolobium contortisiliquum (timbaúva) e Dicksonia sp. (xaxim), evidenciando o uso combinado de recursos agrícolas e florestais.
O milho foi o destaque da amostra, representando cerca de 75% dos vestígios identificados. Essa predominância sugere que o cereal era um pilar da dieta Guarani, utilizado para alimentação, mas também em rituais e festins. As análises morfológicas das cariopses (veja definição ao fim do texto) de milho sugerem três variedades distintas, indicando um conhecimento avançado de cultivo e seleção de sementes.
Contexto histórico e expansão Guarani
Os Guarani, falantes de uma língua da família Tupi-Guarani, originaram-se na Amazônia e expandiram-se por um vasto território que abrange a Mata Atlântica, o Cerrado, o Chaco e o Pampa. Essa expansão, impulsionada por fatores ecológicos, demográficos e conflitos, resultou em interações complexas com outros povos e no transporte de espécies vegetais por longas distâncias. Neste último aspecto, os Guarani tinham destaque, sendo hoje reconhecidos pelo vasto conhecimento botânico adquirido ao longo de milênios.
O sítio RS-T-114, localizado às margens do Rio Forqueta, em Marques de Souza, é testemunho dessa longa e ampla expansão territorial. A aldeia foi ocupada antes da chegada dos colonizadores europeus, com datas que variam entre 1324 a 1809 d.C, e os cultivos encontrados, como o milho, os feijões e provavelmente a mandioca, são os registros mais antigos de plantas domesticadas para a Bacia do Taquari-Antas. Tudo indica que elas foram trazidas já domesticadas da Amazônia, transportadas a longas distâncias e durante muitos séculos a partir do manejo aldeia-a-aldeia, acompanhadas de centenas de outras espécies botânicas.
Funcionalidade dos espaços e práticas sociais
Durante as escavações arqueológicas do sítio RS-T-114, o perímetro de aparecimento de vestígios foi dividido em duas áreas principais: a Área 1, interpretada como um local de descarte, ou seja, uma antiga lixeira da aldeia, devido à alta densidade de fragmentos cerâmicos, líticos e bioarqueológicos; e a Área 2, interpretada como uma área onde as atividades sociais e rituais da aldeia aconteciam. Esta última apresentou uma quantidade significativa de cerâmicas pintadas, incluindo tigelas do tipo kambuchi kaguava, usadas para servir bebidas fermentadas em festins. Além disso, a descoberta de 21 adornos labiais (tembetá) em quartzo hialino reforça a ideia de que a Área 2 era um espaço de convívio e cerimônias.
A predominância do milho na amostra pode estar ligada a essas atividades rituais. Entre os Guarani, o milho era importante para festivais como o avatikyry avati hemongarai (festa anual do milho) e o kunumi pepy, ritual de passagem dos meninos para a vida adulta, que envolvia o consumo de bebidas fermentadas à base de milho e a colocação do primeiro tembetá. Essas práticas, documentadas etnograficamente, sugerem que o milho tinha um valor simbólico e social que transcendia sua função alimentar.
Manejo florestal e sustentabilidade
Além dos cultivos, os Guarani do RS-T-114 utilizavam plantas silvestres da Mata Atlântica para diversos fins. A paineira (Ceiba speciosa), por exemplo, fornecia fibras para artefatos e suas folhas jovens eram consumidas. A timbaúva (Enterolobium contortisiliquum) era usada na pesca pelo seu poder ictiotóxico (intoxicação de peixes) e em medicamentos, enquanto a palmeira jerivá (Syagrus romanzoffiana) tinha importância econômica e cosmológica, aparecendo em mitos de fundação e na seleção de locais para cultivo.

Perspectivas futuras
A pesquisa destacou a complexidade do sistema agrícola Guarani, que combinava cultivos domesticados com o manejo sustentável da floresta. Apesar da baixa variedade taxonômica nos vestígios em comparação com registros etnográficos, os resultados sugerem que a amostra reflete atividades específicas, como festins, em vez do cotidiano doméstico. Futuros estudos, incluindo análises de fitólitos e grãos de amido, podem ampliar o entendimento sobre o uso de tubérculos e raízes, pouco representados nos vestígios carbonizados.

Glossário
Confira a explicação e a definição de termos e conceitos presentes neste texto
Arqueobotânica = uma especialidade da arqueologia que estuda restos de plantas e algas encontrados em sítios arqueológicos. O objetivo é compreender a relação entre os grupos humanos e as plantas no passado.
Cariopse = designação dada em botânica a um tipo de fruto que apresenta a semente soldada ao pericarpo em toda a sua extensão.
Cotilédone = cotilédone é uma folha embrionária que surge dos embriões das espermatófitas, irrompendo durante a germinação das sementes
Carpologia = estudo de sementes.
Ictiotóxico = tóxico para peixes.
Pericarpo = a parede de um ovário maduro, formada pelo epicarpo, o mesocarpo e o endocarpo, e que constitui o próprio fruto, excluindo as sementes; pericárpio.
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