Indígenas venezuelanos vivem em condições precárias em abrigos emergenciais que viraram permanentes na PB


Com população crescente de 620 indígenas em João Pessoa, etnia warao enfrenta cenário de vulnerabilidade. O g1 explica como os abrigos, pensados como resposta emergencial, acabaram se tornando permanentes. Indígena warao denuncia goteiras e problemas estruturais em abrigo de João Pessoa
Indígenas da etnia warao, de origem venezuelana, vivem em abrigos superlotados e com condições sanitárias e estruturais precárias em João Pessoa. Criadas inicialmente como medida emergencial durante a pandemia de Covid-19, essas unidades de acolhimento continuam existindo, mesmo sob críticas de especialistas e dos próprios indígenas.
A crise nesses abrigos não é recente. Nos últimos anos, os warao têm denunciado problemas recorrentes, como goteiras, rachaduras, falta de saneamento e espaços insuficientes para o número de pessoas abrigadas. Hoje, existem sete casas-abrigos distribuídas pela capital paraibana.
Os indígenas chegam ao Brasil buscando por melhores condições de vida, mas se deparam com um novo cenário de vulnerabilidade. Na Paraíba, são registradas mortes de crianças e adultos por causas evitáveis.
Apesar das dificuldades, o fluxo migratório continua. Apenas nos últimos sete meses, a comunidade warao recebeu 200 novos integrantes. Hoje, já são cerca de 620 indígenas vivendo em João Pessoa.
O g1 explica como os abrigos, pensados como resposta emergencial, acabaram se tornando permanentes. Com o crescimento da comunidade, essas estruturas operam sob constante pressão, acumulando problemas que se repetem ao longo dos anos.
A crise nos abrigos
O cacique Ramón Gomez, acompanhado da esposa, de três filhas e da sogra, veio ao Brasil em busca de melhores condições de vida, especialmente para garantir saúde e alimentação às crianças. Atualmente, ele também vive em um dos abrigos de João Pessoa.
Ramón relembra que morava em uma comunidade na zona rural da Venezuela, formada por casas de palafita, construídas sobre a água. Ele deixou o país em 2016, quando a crise econômica se agravou, e cruzou a fronteira com o Brasil por Roraima. O cacique viveu em quatro estados brasileiros diferentes antes de chegar à Paraíba, em 2022.
Cacique Ramón Gomez mora em João Pessoa há três anos
Reprodução/TV Cabo Branco
Gomez relembra que, naquela época, cerca de 300 indígenas já viviam em João Pessoa e não conseguiu morar em um dos abrigos da capital porque estavam lotados. A solução foi alugar uma casa em uma vila do bairro do Róger, mas a família enfrentava muitas dificuldades para pagar as contas.
Após a reforma de um novo abrigo, Ramón deixou o aluguel e passou a viver no local, que fica no Centro de João Pessoa, mas com o tempo surgiram problemas estruturais, como infiltrações e janelas e portas quebradas.
Em 2023, ele denunciou más condições no abrigo, como banheiros e pias quebradas e sete dias sem energia elétrica. Mais recentemente, em abril deste ano, Ramón voltou a relatar condições sanitárias precárias, causadas principalmente por uma fossa estourada, superlotação e surtos de doenças, sendo oito casos de leptospirose e três de dengue confirmados.
Surto de leptospirose é confirmado em abrigo de venezuelanos, em João Pessoa
A situação se repete em outros abrigos indígenas na capital paraibana. No bairro Ernani Sátiro, o cacique Rafael Rattia afirma que o abrigo tem goteiras e, quando chove, as roupas, redes de descanso, comidas e colchão ficam todos molhados. Imagens gravadas por ele mostram também pisos quebrados e uma parede rachada (Veja no vídeo que abre a reportagem). Segundo ele, a situação é a mesma desde 2019.
O Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM) é responsável pelos abrigos dos venezuelanos em João Pessoa, por meio de um convênio com o governo da Paraíba.
Segundo a entidade , a situação do abrigo onde vive o cacique Rafael Rattia, embora o imóvel não faça parte do convênio com o estado.
O SPM diz que, apesar dos reparos no telhado, os problemas estruturais persistem, e que sugeriu ao estado a realocação imediata dos moradores para aluguel social enquanto não há recursos para a recuperação do prédio. Monica Ervolino, gerente executiva de Direitos Humanos da Secretaria de Desenvolvimento Humano (SEDH), afirma que serão concedidos aluguéis sociais para que as famílias desocupem o prédio.
O Serviço Pastoral também afirma que identificou necessidades sanitárias no abrigo onde mora o cacique Rámon e priorizou o prédio em janeiro de 2025, mas que os recursos só foram liberados em abril, permitindo o início das melhorias. Ervolino diz que a SEDH está realocando as famílias para outros dois imóveis, e que o prédio está em condições precárias, sendo devolvido ao proprietário, pois só uma grande reforma estrutural permitiria sua recuperação.
Imagens mostram pisos quebrados e uma parede rachada no abrigo do Ernani Sátiro, em João Pessoa
Montagem/g1
Abrigos eram uma medida emergencial, explica antropólogo
O antropólogo Jamerson Lucena explica que, inicialmente, os abrigos tinham um caráter emergencial, principalmente durante a pandemia da Covid-19, mas permanecem em funcionamento até hoje. Ele pesquisou as comunidades durante o doutorado e viajou até a Venezuela para conhecer uma delas na região do Delta Amacuro.
Segundo o pesquisador, o ambiente dos abrigos é inadequado para os warao, porque não corresponde ao modo de vida tradicional do grupo, que vivia em palafitas, e não em casas convencionais como as utilizadas nos abrigos.
“São completamente inadequados para os warao, pois não há como viver de forma digna nesses ambientes, muitas vezes, inóspitos e insalubres. Nos abrigos é impossível manter sua organização doméstica, seus costumes, práticas de cura, além da sociabilidade com outros grupos de parentes”, afirmou o antropólogo.
Comunidade Warao na região do delta do rio Orinoco, município de António Diaz, estado Delta Amacuro, Venezuela
Jamerson Lucena/Arquivo Pessoal
O cacique Rámon Gomez também destaca que a comunidade não está acostumada a viver em ambientes urbanos, como os que enfrentam aqui. Segundo ele, na Venezuela, cada núcleo familiar também possuía sua própria casa e uma organização independente, diferente da realidade nos abrigos.
“As cidades são muito diferentes (em comparação com a vida na Venezuela). Não é nosso costume, warao. Nosso costume é querer ficar em outros lugares, por exemplo, rurais, onde temos experiência com trabalho de arte, pesca e agricultura”, explica o cacique Ramón Gomez.
Como funcionam os abrigos?
Situação do abrigo de indígenas venezuelanos da etnia warao
Reprodução/TV Cabo Branco
De acordo com o Serviço Pastoral dos Migrantes, os indígenas Warao estão distribuídos entre sete casas de acolhimento espalhadas por João Pessoa.
Os abrigos funcionam em modelo de república, com espaços compartilhados entre os indígenas, e são organizados pelos caciques, que são lideranças. Ainda de acordo com o SPM, os warao recebem cestas básicas com alimentação, além de kits de higiene e limpeza.
A instituição afirma que o acolhimento de mais pessoas nos abrigos é uma decisão dos próprios indígenas e que não exerce governança sobre o assunto, uma vez que eles têm autonomia para administrar suas casas.
Situação do abrigo de indígenas venezuelanos da etnia warao
Reprodução/TV Cabo Branco
O convênio da instituição com o Governo da Paraíba foi renovado até outubro de 2025, com valor de R$ 2,5 milhões, para acolhimento de núcleos familiares da etnia warao.
A meta de atendimento firmada no contrato é de até 450 pessoas — número inferior ao da comunidade warao que vive atualmente na Paraíba, estimada em 620 pessoas. Veja mais abaixo.
Além do SPM, o Centro Estadual de Referência de Migrantes e Refugiados (Cemir), do Governo da Paraíba, acompanha o acesso dos indígenas a políticas assistenciais em áreas como educação, saúde, documentação, geração de renda, cultura e tradução para a comunidade indígena.
Por que os abrigos continuam existindo?
Abrigo em que os indígenas da etnia warao vivem atualmente
Reprodução/TV Cabo Branco
Segundo Mônica Ervolino, gerente executiva de Direitos Humanos da Secretaria de Desenvolvimento Humano (SEDH), o Estado da Paraíba assumiu o abrigamento em 2020 por se tratar de uma situação de emergência, mas nunca conseguiu encerrar a ação devido à falta de políticas públicas de habitação.
Ervolino afirma que a SEDH está buscando uma solução junto a órgãos parceiros, como o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública. No entanto, ressalta que a secretaria não é responsável pela política de habitação social, cabendo apenas indicar a necessidade.
“(No início do acolhimento nos abrigos) Estávamos em uma situação de emergência e calamidade, tanto com o fluxo intenso da migração venezuelana quanto com a pandemia, e nunca conseguimos deixar de executar, porque não existe resposta das políticas de habitação, nem assunção das responsabilidades por parte da prefeitura, e o fluxo deles para a Paraíba só aumenta”, afirmou Mônica.
Já a Secretaria de Direitos Humanos de João Pessoa afirma que todas as questões relacionadas a assistência social para os warao é de responsabilidade do estado. O g1 também entrou em contato com a Funai, mas não recebeu retorno até última atualização desta reportagem.
O Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM) afirma que os indígenas não estão mais em situação emergencial e requerem medidas de assentamento, como a destinação de terras específicas.
Em nota, o serviço afirmou que sempre propôs mudanças no formato de acolhimento. Ainda segundo a instituição, um plano de trabalho foi elaborado e apresentado ao Governo do Estado, no qual são propostas outras alternativas para o acolhimento da população Warao.
Espaço do abrigo do Centro, em João Pessoa, entregue aos warao em 2022
Ação Social Arquidiocesana
Quantos indígenas warao estão na Paraíba?
Hoje, a comunidade indígena warao na Paraíba é formada por cerca de 620 pessoas, segundo levantamento da Secretaria de Desenvolvimento Humano (SEDH) realizado em maio de 2025. O número representa um crescimento significativo em relação a outubro de 2024, quando o Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM) contabilizava 420 indígenas no estado.
Com a chegada de 200 novos indígenas, houve um aumento populacional de cerca de 47,6% em apenas sete meses.
Crianças e adolescentes são maioria e representam 53,9% da população indígena warao que vive em João Pessoa. Ao todo, são 334 pessoas, entre crianças e adolescentes. Veja o levantamento abaixo:
Número de indígenas Warao em maio de 2025, em João Pessoa, PB
A Secretaria de Desenvolvimento Humano também estima que entre 80 e 100 crianças warao nasceram no estado e, portanto, são paraibanas e brasileiras, embora ainda não exista um levantamento específico sobre isso.
Crianças morrem por causas evitáveis
Nos últimos seis anos, a Secretaria de Saúde da Paraíba registrou 22 mortes de indígenas da etnia warao, das quais 10 casos eram bebês de até 1 ano. As causas das mortes incluem broncoaspiração, diarreia, infecção generalizada, malformação genética, causas naturais e outras doenças.
Apenas nos primeiros quatro meses de 2025, quatro indígenas da etnia morreram em João Pessoa. Duas eram crianças e morreram por causas evitáveis, já uma mulher adulta morreu de complicações de um câncer. A morte de uma terceira criança está sendo investigada.
Lideranças indígenas, como o cacique Ramón Gomez, atuam como intermediadores culturais para facilitar a comunicação, já que muitos indígenas da etnia não compreendem espanhol nem português, e falam apenas o dialeto próprio. O trabalho inclui traduzir consultas médicas, explicar procedimentos, mediar conflitos e apresentar a cultura da etnia.
“Só existe um conhecimento para os warao, que são os da saúde warao, que é espiritual, curandeiro, relacionada a plantas medicinais. Eles precisavam saber o que significa vacina, e eu traduzi meningite, sarampo e outro tipo de doença, que tem prevenção com vacina. Para nós, é como violência, porque depois fica doente, fica com febre. Eu expliquei em warao, escrevi em warao, que a vacina é importante”, explica o cacique.
Prédio do abrigo do Centro entregue aos Warao em 2022, em João pessoa.
Ação Social Arquidiocesana
A saúde dos indígenas em João Pessoa é acompanhada pela Prefeitura de João Pessoa, com apoio da Secretaria de Estado da Saúde (SES-PB). A secretaria reconhece dificuldades no acompanhamento de vacinas, pré-natal e outros tratamentos, como em casos de câncer, devido à “diversidade cultural”.
Segundo Mônica Ervolino, da Secretaria de Desenvolvimento Humano (SEDH), diante da falta de “atendimento etnicamente sensível” pela Prefeitura de João Pessoa, o estado está identificando indígenas adoecidos e orientando-os sobre as doenças e a importância do tratamento.
“A equipe municipal tem se limitado a fazer as ações de testagem e, de fato, não tem feito esse processo de atendimento in loco nos abrigos, de identificar, de encaminhar, mas também de fazer todo o processo de sensibilização e de acompanhamento no serviço de saúde, porque a gente sabe toda a complexidade que tem na língua e no entendimento”, afirma Monica Ervolino.
A Prefeitura de João Pessoa afirma que criou, em 2023, um departamento de saúde para imigrantes e refugiados, responsável por mapear necessidades e levar serviços como vacinação, planejamento familiar e medicamentos aos abrigos.
“As equipes de saúde têm se empenhado na criação de estratégias voltadas à redução dos índices de mortalidade. Entre essas abordagens estão ações de incentivo e ampliação do acesso à vacinação, acompanhamento adequado de doenças, assistência pré-natal e orientações de higiene para uma alimentação segura e adequada a cada situação. No entanto, ainda há uma resistência considerável a essas ações, o que resulta em maior risco para o surgimento e/ou agravamento de doenças, assim como para o aumento do número de óbitos evitáveis”, afirmou a Secretaria de Saúde de João Pessoa em nota.
O SPM, apesar de não ser responsável pela saúde, defende que exista uma assistência específica e diferenciada a essa população.
Indígenas fora de abrigos também enfrentam dificuldades
Nem todos os indígenas vivem em abrigos. Segundo o SPM, uma parte dos indígenas também mora em residências custeadas por aluguel social na Vila do Lula, no bairro do Roger. Outros moram em casas alugadas por eles próprios no Distrito Mecânico, na região central da capital, e apenas uma parcela recebe alimentação e kits de higiene.
De acordo com Monica Ervolino, gerente executiva de Direitos Humanos da Secretaria de Desenvolvimento Humano (SEDH), cerca de 140 indígenas Warao vivem no Distrito Mecânico. Ela afirma ainda que essas pessoas estão desassistidas, sem receber auxílio-aluguel nem alimentação, o que seria responsabilidade da Prefeitura de João Pessoa.
Ervolino afirma que os abrigos da capital também estão superlotados porque os indígenas alugam as casas por conta própria e não conseguem manter o pagamento, provocando uma pressão nas casas de acolhimento.
Segundo ela, o Centro Estadual de Referência de Migrantes e Refugiados (Cemir), do Governo da Paraíba, é responsável apenas por acompanhar e encaminhar os indígenas para políticas públicas locais. Monica afirma que, em via de regra, o estado não é responsável por executar a política de assistência social.
“O atendimento de saúde só é realizado se eles procurarem o PSF (Posto de Saúde da Família). Já solicitamos ações no local e o atendimento da equipe de saúde municipal que assiste os indígenas no abrigo, mas a resposta que recebemos foi que eles não são considerados abrigados”, afirmou Ervolino.
“Mesmo que eles acessem os hospitais ou postos de saúde, sozinhos, geralmente esses serviços ligam para a gente, ligam para a equipe do CEMIR dizendo que precisam de ajuda porque não estão conseguindo se comunicar com eles. Então esse despreparo dos serviços também causa muita violência, principalmente no ambiente hospitalar”, concluiu Monica.
A Prefeitura de João Pessoa afirmou que os indígenas que vivem no Distrito Mecânico são apresentados ao sistema de saúde brasileiro e acompanhados para que possam se adaptar e participar ativamente dos processos assistenciais. Segundo a Saúde, elas recebem visitas e seguem sendo acompanhadas pela Unidade de Saúde da Família do território, que está ciente da situação e capacitada para acolhê-las.
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