Ser Acessível: Com alta de 1.204% de alunos autistas, matrículas na educação especial em Campinas dobram em dez anos


Dados obtidos via LAI mostram aumento entre 2014 e 2024, e indicam que estudantes com TEA representam 55,1% do total do público da educação especial na educação básica da rede municipal. #paratodosverem: Ao lado de uma colega, Pedro Domingues desenha segurando um lápis de cor grosso, com diâmetro maior, na cor laranja
Estevão Mamédio/g1
O número de matrículas de estudantes com deficiência em Campinas (SP) dobrou no intervalo de dez anos. Crescimento impulsionado pelos alunos diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram que o volume de crianças e adolescentes autistas na rede municipal de ensino cresceu 1.204%. Confira:
2014
Total de alunos da educação especial: 380
Alunos com TEA: 105

2024
Total de alunos da educação especial: ️2.483 ⬆️
Alunos com TEA: 1.370 ⬆️
Em todo o Brasil, segundo o Ministério da Educação (MEC), as matrículas de estudantes com TEA nas redes públicas e privada representam atualmente 44,2% do total do público da educação especial, que inclui crianças com deficiência e alunos com altas habilidades e superdotação.
Em Campinas, os 1.370 estudantes autistas matriculados em 2024 representam 55,1% do total de crianças e adolescentes público da educação especial da rede municipal.

Enquanto no Brasil o MEC informa que o aumento de alunos na educação especial foi de 134,2% entre 2014 e 2024 – pulou de 886,8 mil para 2,07 milhões -, no mesmo período a demanda por matrículas apenas na rede municipal de Campinas cresceu 553,4% – volume 2,7 vezes maior comparado com o cenário nacional.
Considerando as redes pública e privada de Campinas, o aumento de matrículas na educação especial cresceu 106% no período, com 91,1% dos estudantes em classes comuns – veja gráfico abaixo 📊.

Para entender os números e o que tem sido feito para atender a demanda crescente, o g1 conversou com professores, especialistas e o poder público.
O conteúdo integra a série de reportagens “Ser Acessível’, coprodução do g1 e da EPTV que aborda questões sobre a educação acessível.
Nesta reportagem você confere ⬇️
Contexto histórico
Pressão na rede de ensino
Recursos, estrutura…
Viés médico e não pedagógico
O que diz o MEC?
O que tem sido feito em Campinas?
Contexto histórico
Para entender o movimento que resulta na ampliação da oferta e do número de matrículas na educação especial no Brasil, o professor Régis Henrique dos Reis Silva, da Faculdade de Educação da Unicamp, cita o processo histórico para contextualizar o cenário da inclusão a partir dos modelos utilizados na rede pública de ensino.
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Régis pontua que houve maior envolvimento governamental com a inclusão a partir dos anos 1970, mas ainda dentro do modelo com escolas e classes especiais destinadas às pessoas com deficiência.
É a partir dos anos 1980 que há a compreensão da escola como um direito, porém ainda com foco na lógica do acesso universal, sem pensar nas necessidades individualizadas.
“A partir dos anos 1990, a gente tem mudanças importantes, muito em função da questão da política de Estado, da mudança de modelo de Estado, onde o atendimento a esses públicos passa a ser muito mais orientado numa perspectiva focalizada”, explica Silva.
Quais os modelos utilizados?
Segundo o professor da Unicamp, dentro de uma perspectiva mais inclusiva, o país experimentou um modelo conhecido como “cascata”, em que se entendia a importância das pessoas com deficiência na escola comum, mas ainda convivia-se bem com as escolas especiais (separadas).

O modelo de inclusão total, que passou a ser o principal adotado no Brasil, ganha força em especial no início dos anos 2000, período, inclusive, que o professor destaca que Ministério Público (MP) e sistema judiciário passaram a ter o entendimento que a primeira matrícula do aluno com deficiência é na escola comum.
Nesse caso, depois da matrícula direcionada para a escola regular, é que se tem o entendimento por um trabalho de apoio ao estudante com deficiência, que posteriomente acaba sendo chamado de Atendimento Educacional Especializado (AEE), detalha o professor.
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Pressão na rede de ensino
Com a presença cada vez maior de estudantes público da educação especial nas escolas, Régis Silva destaca que a grande preocupação de quem atua na área é com o financiamento, em especial da escola pública, seja para infraestrutura, de acesso a recusos, contratação e formação continuada de profissionais.
O professor da Unicamp defende que o volume de recursos empregado pelo governo federal não aumentou na mesma taxa de crescimento das matrículas, e houve crescimento na sobrecarga sobre estados e municípios, incluindo uma falta de diretrizes por um período.
Em nota, o MEC afirma que tem fortalecido a política na educação especial desde 2023 – leia abaixo.
Recursos, estrutura…
O professor da Unicamp pontua que o modelo atual está condicionado a capacidade de financiamento, e que entre 2003 e 2014, havia uma perspectiva mais centralizadora e atuante do governo federal no tema.
Nesse período houve desde a apresentação da proposta política, que resultou na Política Nacional de Educação Especial, de 2008, como o financimento na formação de professores e criação de Salas de Recursos Multifuncionais (SRM), por exemplo.
📉 Redução nos recursos: Régis explica que desde que o teto de gastos foi proposto em 2016 pelo então presidente Michel Temer, houve diminuição substantiva de recursos e um processo de descentralização, enquanto ao mesmo tempo dobrou o número de alunos com deficiência nas salas de aula.
“Os estados e os municípios estão lidando com os alunos, estão recebendo os alunos, mas eles já não têm mais as diretrizes, a centralização, não têm mais os recursos do governo federal. E muitos foram obrigados a garantir o AEE muito em função de ações de famílias que buscaram no judiciário esse apoio”, explica.
📊 Estrutura ‘andando de lado’. De acordo com o professor, uma forma de exemplificar como a diminuição de recursos e falta de estratégia impacta no atendimento para essas crianças e adolescentes com deficiência está nos números de um dos recursos fundamentais dentro do trabalho especializado da educação especial: as Salas de Recursos Multifuncionais (SRM).
Dados do Censo Escolar do Inep mostram que a proporção de escolas no Brasil com salas de recursos oscila dentro dos 31% desde 2016, apesar do crescimento acelerado e da maior presença de alunos com deficiência no ensino básico.
#paratodosverem: Em classe, uma professora escreve na lousa. Uma criança é vista sentada na carteira, de costas
Estevão Mamédio/g1
Viés médico e não pedagógico
Segundo o professor da Unicamp, um dos efeitos dessa desestruturação, seja organizacional e de financiamento, passa pela mudança no viés do atendimento na rede de ensino, que passa a ser respaldado por laudos médicos para oferta do atendimento especializado.
Ou seja, o educador explica que como é preciso “controlar” recursos em um cenário de demanda cada vez maior, o Atentimento Educacional Especializado (AEE) acaba sendo garantido a criança e adolescente “laudados” (com diagnóstico), e em muitos cenários, via ações judiciais.
Régis Silva ressalta que o “laudo traz uma perspectiva médica que diz alguma coisa sobre o aluno, mas não diz tudo sobre a pessoa”.
Queda na qualidade! Segundo o educador, o sistema pautado por laudos médicos faz com que estados e municípios forneçam atendimento apenas por uma questão legal, muitas vezes com contratações com serviços privados em que pode não haver a conhecimento pedagógico ou formação adequada, como é o caso de cuidadores e profissionais de apoio.
“A questão de fundo é uma questão pedagógica, como esse pedagógico vem sendo viabilizado, no sentido de uma maior integração, de uma maior inclusão ou participação dos alunos com deficiência e daqueles que trabalham com os alunos com deficiência na organização do trabalho pedagógico da escola, mas, pelo contrário, essa garantia da matrícula e da presença do aluno na escola hoje está sendo viabilizada por uma questão, primeiramente, jurídica, que se fundamenta numa concepção médica e que está colocando, no âmbito da escola, uma perspectiva privatista. Ou seja, você vai ter um processo de grupos, de assessorias, sempre com perspectiva individualizada, com equipes terceirizadas, muitas vezes com trabalhos precarizados, para fazer um apoio que, na verdade, não se entrega à organização do trabalho pedagógico da escola”, completa Régis.
#paratodosverem: O professor da Unicamp, Régis Silva, visto de frente. Ele é branco de cabelos e barba grisalhos. Usa camiseta polo azul marinho
Jefferson Souza/EPTV
O que diz o MEC?
Procurado para comentar sobre o aumento da demanda e o financiamento da educação inclusiva, o Ministério da Educação (MEC) respondeu, por nota, que a política tem sido fortalecida, desde 2023, “com investimentos em formação docente, infraestrutura, transporte, tecnologia assistiva e apoio técnico e financeiro aos sistemas de ensino, em colaboração com estados e municípios”.
“As ações visam assegurar o direito à educação inclusiva para estudantes com deficiência, transtorno do espectro autista (TEA) e altas habilidades ou superdotação, em todos os níveis, etapas e modalidades”, diz.
A pasta avalia o aumento nas matrículas como significativo, e que isso demonstra avanços da política educacional inclusiva brasileira, além de defender que tem investido tanto no repasse de recursos como na formação de professores e profissionais da área.
E defente que tem trabalhado atualmente na atualização da Política Nacional de Educação Especial Inclusiva, “com foco em diretrizes para o profissional de apoio escolar, implantação de centros de formação e observatórios da inclusão nas 27 unidades da federação, bem como novos instrumentos de monitoramento e governança das redes”.
Veja o posicionamento na íntegra:
“O Ministério da Educação (MEC) reafirma seu compromisso com a consolidação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI). Desde 2023, essa política tem sido fortalecida com investimentos significativos em formação docente, infraestrutura, transporte, tecnologia assistiva e apoio técnico e financeiro aos sistemas de ensino, em regime de colaboração com estados e municípios. As ações visam assegurar o direito à educação inclusiva para estudantes com deficiência, transtorno do espectro autista (TEA) e altas habilidades ou superdotação, em todos os níveis, etapas e modalidades.
Entre 2014 e 2024, o número de matrículas de estudantes da educação especial passou de 886.815 para 2.076.825, o que representa um aumento de 134,2%. A inclusão em classes comuns também avançou significativamente, passando de 78,8% para 92,6% no mesmo período. A meta de alcançar 2 milhões de matrículas até 2026, estabelecida no Plano de Afirmação e Fortalecimento da PNEEPEI (2023), foi atingida com dois anos de antecedência, demonstrando os avanços da política educacional inclusiva brasileira.
Houve também uma mudança no perfil das matrículas. A proporção de estudantes com deficiência intelectual caiu de 69% para 48,5%, enquanto as matrículas de estudantes com TEA subiram de 9,3% para 44,2%. O crescimento está relacionado ao maior reconhecimento social sobre autismo, ampliação dos diagnósticos, atenção precoce e fortalecimento das políticas educacionais voltadas a esse público.
De acordo com o Censo Escolar 2024, 42,6% dos estudantes incluídos em classes comuns recebem Atendimento Educacional Especializado (AEE), um aumento de 14,5% desde 2020. O AEE pode ser realizado em Salas de Recursos Multifuncionais (SRM), centros especializados públicos ou instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos, de acordo com a organização dos sistemas de ensino.
Para apoiar o AEE, o MEC executa o Programa Dinheiro Direto na Escola – Sala de Recursos Multifuncionais (PDDE-SRM). Desde sua retomada, já foram investidos R$ 439 milhões, beneficiando mais de 21 mil escolas públicas. Em 2025, está prevista nova expansão com aporte de aproximadamente R$ 200 milhões.
Até 2026, o MEC, por meio da CAPES, ofertará 1,2 milhão de vagas para formação continuada de professores da Educação Básica de todo o país, por meio do curso Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, em parceria com 50 instituições públicas de ensino superior. O programa PARFOR Equidade, também coordenado pela Capes, oferece pela primeira vez licenciaturas específicas em Educação Especial e Inclusiva.
Já a Rede Nacional de Formação Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica Pública (RENAFOR) oferece cursos de formação continuada para professores do Atendimento Educacional Especializado (AEE) e gestores escolares. Em 2024, foram ofertados 77 cursos – 50 voltados a professores do AEE e 27 para gestores – com mais de 30 mil vagas. Com um investimento de R$ 23 milhões em 2024, houve crescimento de 108,1% no número de cursos ofertados, 65,9% no número de vagas e 67,9% no número de municípios contemplados, em relação ao ano anterior.
Financiamento da Educação Especial Inclusiva
O valor mínimo aluno/ano da educação especial inclusiva no Fundeb subiu de R$ 6.378,67 em 2023 (com fator de ponderação 1,20) para R$ 7.627,17 em 2025, com o novo fator de ponderação fixado em 1,40. No caso dos estudantes que recebem Atendimento Educacional Especializado (AEE), o financiamento é ainda mais robusto: esses estudantes têm o valor calculado duplamente, ou seja, recebem duas vezes o valor com ponderação 1,40, o que resulta em um repasse reforçado ao sistema de ensino, ampliando a capacidade das redes para investir na educação inclusiva.
No estado de São Paulo, 3.047 escolas foram atendidas pelo PDDE-SRM nos últimos dois anos, totalizando R$ 62.168.000,00 investidos – sendo R$ 37.976.000,00 para 1.885 escolas estaduais e R$ 24.192.000,00 para 1.162 escolas municipais.
No município de Campinas, foram contempladas 68 escolas, com repasse total de R$ 1.432.000,00 – R$ 1.272.000,00 para 63 estaduais e R$ 160.000,00 para 5 municipais.
Entre 2014 e 2024, 13.973 professores de São Paulo participaram de formações via RENAFOR, sendo que 41% dessas matrículas ocorreram somente em 2023 e 2024. No mesmo período, 381 professores de Campinas participaram, com 55% das adesões registradas também nos dois últimos anos.”
#paratodosverem: Pedro Domingues em sua cadeira de rodas está na porta da classe, conduzido pela cuidadora
Estevão Mamédio/g1
O que tem sido feito em Campinas?
Segundo Luciano Reis, diretor pedagógico da Secretaria de Educação de Campinas, o número de professores de educação especial saltou de 70 para 234 na rede municipal nos últimos anos, e que o secretário já autorizou a convocação de mais 20 cargos de profissionais para a rede.
A pasta informou que conta atualmente com 617 cuidadores, 196 estagiários e 526 alunos que utilizam o transporte adaptado na nrede municipal.
Sobre os serviços de apoio, a Secretaria Municipal de Educação informou que eles se dividem da seguinte maneira:
Cuidador: voltado a alunos com deficiência que precisam de apoio para alimentação, locomoção, higiene e autocuidado.

Apoio pedagógico aos processos inclusivos: realizado por estagiários de pedagogia ou professores adjuntos de educação especial, inclusive para as mediações pedagógicas necessárias no processo pedagógico.
Estrutura
Reis garante que é realizado um trabalho constante na formação e entendimento das necessidades do público da educação especial, e que a pasta tem ampliado não só o quadro de servidores, mas investe em sua estrutura.
Campinas possui o Centro Multidisciplinar de Apoio, Pesquisa e Assessoria da Educação Especial Inclusiva (Cemapa); Centro de Produção de Materiais Adaptados (Cepromad); e Gestão de Apoio À Inclusão de Alunos com Altas Habilidades/Superdotação (Gaiah).
E entre os recursos essenciais estão as Salas de Recursos Multifuncionais (SRM). Atualmente são 493 alunos atendidos em 33 salas de recursos em Campinas (veja relação abaixo), e Reis afirma que elas podem ser ampliadas com o aumento da demanda.
“As salas de recurso nós estamos aumentando as suas quantidades também. Tem em vários lugares do município agora. Antes nós tínhamos em regiões centralizadas, como aqui no centro da cidade. Nós fizemos um levantamento, um planejamento e percebemos que tem muitas crianças em determinadas regiões onde não tinha salas de recurso multifuncional. E nós levamos essas salas para lá”, defende.
#paratodosverem: A professora Aline Begossi e a menina Catarina sentadas à mesa. Catarina olha um livro de ilustrações coloridas com cenas do cotidiano de expressões humanas. Elas são filmadas de perto por um homem, com uma grande câmera
Fernando Evans/g1
Salas de recursos em Campinas
📍 Região Leste
EMEI Dr. Perseu Leite Barros
EMEF Raul Pila
EMEF Elvira Muraro
CEI Arthur Bernardes
📍 Região Norte
EMEF Vicente Rao
CEI Agostinho Páttaro
EMEF Edson Luis Lima Souto
EEI/EJA João Alves dos Santos
EMEF/EJA Pe. Domingos Zatti
CEI Regente Feijó
EMEF/EJA José Narciso Vieira Ehrenberg
EMEF/EJA Profª Geny Rodriguez
CEI Mário Gatti – GAIAH
📍 Região Noroeste
EEI Pe. Francisco Silva
CEI João Vialta
EMEF Clotilde Barraquet Von Zuben
CEI Maria Amélia Massucci
Leão Valerie
EMEF/EJA Dr. Edson Luis Chaves
Márcia Marília Martorano
EMEF/EJA Profª Sylvia Simões Magro
📍 Região Sudoeste
EEI/EJA Zeferino Vaz – CAIC
CEI Guilherme de Almeida
EMEF Carmelina de Castro Rinco
EMEF/EJA Maria Pavanatti Fávaro
CEI Marilene Cabral
CEI Thermutis Araújo Machado (em processo de abertura)
📍 Região Sul
CEI Annita Affonso Ferreira
EMEF Violeta Dória Lins
EEI Pe. Avelino Canazza
EMEF Humberto de Alencar Castelo Branco
EMEF/EJA Profª Odila Maia Rocha Brito
EMEF/EJA Maria de Fátima Faria Área
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