Antes de se tornar político e uma figura internacionalmente reconhecida, o ex-presidente do Uruguai José Pepe Mujica viveu anos de luta armada, no Movimiento de Liberación Nacional-Tupamaros. Antes de se tornar político e uma figura internacionalmente reconhecida, o ex-presidente do Uruguai José Mujica viveu anos de luta armada, no Movimiento de Liberación Nacional-Tupamaros (MLN-T), o movimento guerrilheiro urbano uruguaio que, nas décadas de 1960 e 1970, realizou assaltos, sequestros e execuções, influenciados pela revolução cubana e pelo socialismo.
Ao podcast Witness History, do Serviço Mundial da BBC, ele relembrou do episódio em que fugiu da prisão com outros 105 tupamaros e alguns prisioneiros comuns da prisão de Punta Carretas, em Montevidéu, em 1971, através de um túnel, um evento chocante que levou o governo a transferir o comando da luta contra os guerrilheiros da polícia para os militares.
Leia a seguir trechos das lembranças relatadas pelo próprio Mujica, conforme entrevista à BBC.
Também é possível ouvir a entrevista original aqui, em inglês.
A fuga da prisão por um túnel (1971)
A primeira fuga, que foi chamada de “El abuso” (O abuso), é precedida por várias tentativas.
A ideia era que os companheiros fora da prisão entrassem por um túnel. Mas isso tinha grandes desvantagens que causavam alarmes e colocavam a prisão em perigo.
Foi nessas condições que surgiu a ideia de tentar fazer um túnel de dentro para fora da prisão. Mas era preciso resolver uma série de problemas. Um deles: como fazer buracos nas paredes de uma antiga prisão feita de tijolos enormes e muito duros?
Descobrimos pelos prisioneiros comuns que as paredes podem ser serradas com uma corrente. Fizemos um primeiro teste na cela onde eu estava com outros companheiros.
Roubamos uma corrente do banheiro, fizemos um pequeno buraco de um lado a outro e começamos a serrar. Mas as correntes não aguentaram. Então decidimos cortar a mistura, o material mais macio, com os arames das camas.
Por meio de subornos, convencemos algumas autoridades a fazer com que as revistas fossem apenas uma olhada de fora e nada mais.
Estávamos em um andar de cima e o andar de baixo era de presos comuns.
Precisávamos atravessar as paredes de modo que alguns painéis quadrados fossem retirados e colocados de volta.
Costumávamos colocar cimento branco, misturado com farinha. Com isso, fazíamos um reboco, que depois sujávamos com café e erva-mate, para que ficasse com a aparência geral das celas. Assim, estávamos em condições de retirar os pedaços e nos comunicar.
Tínhamos conseguido convencer um preso comum que estava embaixo, a partir da cela dele iniciaríamos o túnel para fora, com a promessa de que, ao conseguirmos a liberdade, o levaríamos junto. E assim foi.
Foi uma obra que levou mais de um mês. Organizamos os companheiros mais fortes para que fossem cavando o túnel. Tivemos que resolver o problema do ar com uns foles que fabricamos.
Quando chegamos à fundação, tivemos que descer mais, e aí encontramos um pedaço de rocha que nos travou. O plano quase fracassou, mas conseguimos superar. E atravessamos a rua.
Íamos tirando a terra em saquinhos e colocando debaixo das camas. Ficamos quase atolados de terra, mas disfarçamos.
Conseguimos preparar a infraestrutura para uma noite determinada, na qual os companheiros tinham que ocupar as casas da frente, por onde sairíamos.
Tínhamos alguns companheiros que eram engenheiros e inventaram um aparelho para nos orientar debaixo da terra. Erramos por mais ou menos um metro o ponto por onde deveríamos sair.
Os companheiros que ocuparam a casa usavam um estetoscópio para escutar os golpes.
Estávamos felizes, mas muito preocupados. Tudo isso foi acompanhado por uma festa organizada por outros companheiros em uma paróquia ao lado, com baile e tudo, para distrair a atenção.
Paralelamente, em outro ponto da cidade, em La Teja, os companheiros que estavam do lado de fora realizaram uma série de ações com o objetivo de atrair o aparato policial para os distúrbios, diminuindo assim a capacidade repressiva na área onde estávamos.
Saímos em dois caminhões que tinham sido conseguidos em um depósito de materiais de construção.
Encontro com sua futura esposa (Setembro de 1971)
Conheci minha esposa na noite em que escapamos da prisão. Ela estava com as pessoas que estavam nos apoiando do lado de fora. Elas haviam ocupado uma das casas em que saímos do subsolo para sair da prisão depois de termos feito o túnel.
Eu a vi quase que acidentalmente e seguimos com nossa vida.
Ela era uma estudante avançada de arquitetura que trabalhava em um departamento financeiro de um banco. Ela era muito bonita e jovem.
Como parte dos trabalhos que tinha na empresa financeira, ela era enviada com uma mala de dinheiro para alguns aviões que faziam escala em Carrasco. Era um negócio financeiro clandestino. E ela decidiu denunciá-lo.
Mas o banco estava intimamente ligado aos interesses de um ministro da economia na época. Ela percebeu que qualquer denúncia formal seria em vão e decidiu passar as informações para os Tupamaros.
Alguns colegas foram até o escritório. Eles levaram vários documentos e fizeram uma reclamação pública. Os proprietários da empresa financeira não tiveram outra ideia melhor do que atear fogo para tentar encobrir o fato. Foi um escândalo.
Fui preso novamente e fugi de novo. Essa segunda fuga foi ao contrário: um túnel de fora para dentro.
E nos conhecemos em uma noite em que estávamos sob muita perseguição. Eu estava em um cargo relativamente alto e ela tinha contatos com parte do aparato clandestino.
Humanos, embora não saibamos disso, quando vivemos em uma atmosfera de perigo em que a liberdade e a vida estão em jogo a cada passo, nós nos apegamos ao amor porque a natureza biológica nos impõe isso.
E nos reunimos uma noite, na margem de um riacho.
Prisão e tortura (Agosto de 1972 – Março de 1985)
Estive em uma espécie de porão muito úmido num quartel da cidade de Paso de los Toros, anos depois, quando os militares já tinham dado o golpe de Estado.
Lembro que cuidava de seis, sete rãzinhas no calabouço. Colocava um copinho com água para que elas tomassem banho. Eram rãzinhas de sarçal.
Foi ali que percebi que as formigas gritam quando a gente as pega e coloca no tímpano do ouvido.
Era como um corredor longo. Na parte da frente sempre havia um guarda, que andava de um lado para o outro. Uma escada comprida levava a um lugar onde ficava a guarda dos soldados. Quando precisávamos ir ao banheiro, tínhamos que chamar e nos levavam.
Naquela época, a cada sete ou oito meses, nos trocavam de quartel. Aprendemos uma coisa: sempre dá para estar pior. Eu fiquei sete anos sem poder ler, sem livros, sem nada.
Muitos castigos de pé e várias torturas no início. Tudo é relativo.
Por exemplo, no quartel de Minas, quando me tiraram da prisão e começou o périplo pelos quartéis, passei seis meses amarrado com arame, algemado para trás. Tinha que passar o dia sentado num banquinho encostado na porta, dentro de uma cela.
Foi ali que soube que Saigon estava caindo na guerra do Vietnã.
Liberação
Eu saí na primeira leva de companheiros, dois dias antes, porque os que não tinham delitos de sangue saíam primeiro.
Mas saí com uma missão: precisava conseguir um local para que pudéssemos nos reunir. E assim foi.
Fui até minha casa, abracei minha mãe e saí imediatamente para encontrar esse local. Conseguimos um convento onde nos reunimos e ficamos quase um mês, período em que decidimos o que faríamos naquela etapa.
Na noite em que saí, as companheiras também tinham sido libertadas. E alguma mão amiga a levou (a Lucía) até minha casa. Nos abraçamos e ficamos juntos até hoje.
Ao podcast Witness History, do Serviço Mundial da BBC, ele relembrou do episódio em que fugiu da prisão com outros 105 tupamaros e alguns prisioneiros comuns da prisão de Punta Carretas, em Montevidéu, em 1971, através de um túnel, um evento chocante que levou o governo a transferir o comando da luta contra os guerrilheiros da polícia para os militares.
Leia a seguir trechos das lembranças relatadas pelo próprio Mujica, conforme entrevista à BBC.
Também é possível ouvir a entrevista original aqui, em inglês.
A fuga da prisão por um túnel (1971)
A primeira fuga, que foi chamada de “El abuso” (O abuso), é precedida por várias tentativas.
A ideia era que os companheiros fora da prisão entrassem por um túnel. Mas isso tinha grandes desvantagens que causavam alarmes e colocavam a prisão em perigo.
Foi nessas condições que surgiu a ideia de tentar fazer um túnel de dentro para fora da prisão. Mas era preciso resolver uma série de problemas. Um deles: como fazer buracos nas paredes de uma antiga prisão feita de tijolos enormes e muito duros?
Descobrimos pelos prisioneiros comuns que as paredes podem ser serradas com uma corrente. Fizemos um primeiro teste na cela onde eu estava com outros companheiros.
Roubamos uma corrente do banheiro, fizemos um pequeno buraco de um lado a outro e começamos a serrar. Mas as correntes não aguentaram. Então decidimos cortar a mistura, o material mais macio, com os arames das camas.
Por meio de subornos, convencemos algumas autoridades a fazer com que as revistas fossem apenas uma olhada de fora e nada mais.
Estávamos em um andar de cima e o andar de baixo era de presos comuns.
Precisávamos atravessar as paredes de modo que alguns painéis quadrados fossem retirados e colocados de volta.
Costumávamos colocar cimento branco, misturado com farinha. Com isso, fazíamos um reboco, que depois sujávamos com café e erva-mate, para que ficasse com a aparência geral das celas. Assim, estávamos em condições de retirar os pedaços e nos comunicar.
Tínhamos conseguido convencer um preso comum que estava embaixo, a partir da cela dele iniciaríamos o túnel para fora, com a promessa de que, ao conseguirmos a liberdade, o levaríamos junto. E assim foi.
Foi uma obra que levou mais de um mês. Organizamos os companheiros mais fortes para que fossem cavando o túnel. Tivemos que resolver o problema do ar com uns foles que fabricamos.
Quando chegamos à fundação, tivemos que descer mais, e aí encontramos um pedaço de rocha que nos travou. O plano quase fracassou, mas conseguimos superar. E atravessamos a rua.
Íamos tirando a terra em saquinhos e colocando debaixo das camas. Ficamos quase atolados de terra, mas disfarçamos.
Conseguimos preparar a infraestrutura para uma noite determinada, na qual os companheiros tinham que ocupar as casas da frente, por onde sairíamos.
Tínhamos alguns companheiros que eram engenheiros e inventaram um aparelho para nos orientar debaixo da terra. Erramos por mais ou menos um metro o ponto por onde deveríamos sair.
Os companheiros que ocuparam a casa usavam um estetoscópio para escutar os golpes.
Estávamos felizes, mas muito preocupados. Tudo isso foi acompanhado por uma festa organizada por outros companheiros em uma paróquia ao lado, com baile e tudo, para distrair a atenção.
Paralelamente, em outro ponto da cidade, em La Teja, os companheiros que estavam do lado de fora realizaram uma série de ações com o objetivo de atrair o aparato policial para os distúrbios, diminuindo assim a capacidade repressiva na área onde estávamos.
Saímos em dois caminhões que tinham sido conseguidos em um depósito de materiais de construção.
Encontro com sua futura esposa (Setembro de 1971)
Conheci minha esposa na noite em que escapamos da prisão. Ela estava com as pessoas que estavam nos apoiando do lado de fora. Elas haviam ocupado uma das casas em que saímos do subsolo para sair da prisão depois de termos feito o túnel.
Eu a vi quase que acidentalmente e seguimos com nossa vida.
Ela era uma estudante avançada de arquitetura que trabalhava em um departamento financeiro de um banco. Ela era muito bonita e jovem.
Como parte dos trabalhos que tinha na empresa financeira, ela era enviada com uma mala de dinheiro para alguns aviões que faziam escala em Carrasco. Era um negócio financeiro clandestino. E ela decidiu denunciá-lo.
Mas o banco estava intimamente ligado aos interesses de um ministro da economia na época. Ela percebeu que qualquer denúncia formal seria em vão e decidiu passar as informações para os Tupamaros.
Alguns colegas foram até o escritório. Eles levaram vários documentos e fizeram uma reclamação pública. Os proprietários da empresa financeira não tiveram outra ideia melhor do que atear fogo para tentar encobrir o fato. Foi um escândalo.
Fui preso novamente e fugi de novo. Essa segunda fuga foi ao contrário: um túnel de fora para dentro.
E nos conhecemos em uma noite em que estávamos sob muita perseguição. Eu estava em um cargo relativamente alto e ela tinha contatos com parte do aparato clandestino.
Humanos, embora não saibamos disso, quando vivemos em uma atmosfera de perigo em que a liberdade e a vida estão em jogo a cada passo, nós nos apegamos ao amor porque a natureza biológica nos impõe isso.
E nos reunimos uma noite, na margem de um riacho.
Prisão e tortura (Agosto de 1972 – Março de 1985)
Estive em uma espécie de porão muito úmido num quartel da cidade de Paso de los Toros, anos depois, quando os militares já tinham dado o golpe de Estado.
Lembro que cuidava de seis, sete rãzinhas no calabouço. Colocava um copinho com água para que elas tomassem banho. Eram rãzinhas de sarçal.
Foi ali que percebi que as formigas gritam quando a gente as pega e coloca no tímpano do ouvido.
Era como um corredor longo. Na parte da frente sempre havia um guarda, que andava de um lado para o outro. Uma escada comprida levava a um lugar onde ficava a guarda dos soldados. Quando precisávamos ir ao banheiro, tínhamos que chamar e nos levavam.
Naquela época, a cada sete ou oito meses, nos trocavam de quartel. Aprendemos uma coisa: sempre dá para estar pior. Eu fiquei sete anos sem poder ler, sem livros, sem nada.
Muitos castigos de pé e várias torturas no início. Tudo é relativo.
Por exemplo, no quartel de Minas, quando me tiraram da prisão e começou o périplo pelos quartéis, passei seis meses amarrado com arame, algemado para trás. Tinha que passar o dia sentado num banquinho encostado na porta, dentro de uma cela.
Foi ali que soube que Saigon estava caindo na guerra do Vietnã.
Liberação
Eu saí na primeira leva de companheiros, dois dias antes, porque os que não tinham delitos de sangue saíam primeiro.
Mas saí com uma missão: precisava conseguir um local para que pudéssemos nos reunir. E assim foi.
Fui até minha casa, abracei minha mãe e saí imediatamente para encontrar esse local. Conseguimos um convento onde nos reunimos e ficamos quase um mês, período em que decidimos o que faríamos naquela etapa.
Na noite em que saí, as companheiras também tinham sido libertadas. E alguma mão amiga a levou (a Lucía) até minha casa. Nos abraçamos e ficamos juntos até hoje.