Projetos de R$ 100 bilhões da Casa dos Ventos em hub de hidrogênio verde no Ceará ficam “sem energia”

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A euforia do segmento de energia limpa do País com a sanção da Lei 14.948, que criou o marco legal do hidrogênio verde (H2V), em agosto de 2024, durou pouco.

Festejada como o último obstáculo pendente para destravar mais de 60 projetos, com potencial de liberar R$ 188 bilhões em investimentos, a criação do marco legal acabou sucumbindo diante da limitação do setor elétrico nacional em suportar a sobrecarga significativa na rede de transmissão prevista pelos primeiros projetos de hidrogênio verde a saírem do papel.

Em linhas gerais, é o que alegou a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) ao negar recurso da empresa de energia Casa dos Ventos relacionado ao pedido de conexão de projetos de uma planta para produzir amônia verde, um investimento de R$ 49 bilhões, e de dois data centers em parceira com a empresa chinesa ByteDance, dona do Tik Tok, no valor total de R$ 50 bilhões, no Complexo do Pecém, no Ceará – apontado como o maior hub de hidrogênio verde em formação no País.

O caso expõe a contradição da grande oferta de energia, disponibilizada nos últimos anos pelo crescimento exponencial de fontes renováveis, como as energias eólica e solar, e a falta de capacidade do sistema de atender a demanda – a ampliação da rede de linhas de transmissão simplesmente não acompanhou esse crescimento.

Alguns aspectos do episódio chamaram a atenção por expor as falhas de coordenação entre órgãos públicos e problemas de gestão crescente do setor elétrico, que sempre foi considerado o mais bem organizado no segmento de infraestrutura do País.

No caso dos dois projetos da Casa dos Ventos, a Aneel decidiu seguir recomendações do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), que apontou riscos de sobrecarga significativa na rede de transmissão para barrar os pedidos, devido à ausência de reforços estruturais, além de outros problemas técnicos.

Ocorre que detalhes dos dois empreendimentos, com demanda total de 1.776 MW e previsão de entrar em operação no final de 2027 (data centers) e de 2028 (planta de amônia), foram entregues pela Casa dos Ventos à Secretaria Nacional de Transição Energética e Planejamento do Ministério de Minas e Energia (MME) entre junho e agosto do ano passado, antes da aprovação do marco legal.

No pedido, a empresa apontou como suporte para envio de energia um seccionamento da linha de transmissão 500 kV Pecém II – Pacatuba C1, operada pela Sistema de Transmissão Nordeste S/A. Ainda no ano passado, a empresa protocolou junto ao ONS solicitações formais de acesso das unidades ao sistema de transmissão.

A Aneel chegou a autorizar o acesso de um dos data centers da Casa dos Ventos à rede básica do Sistema Interligado Nacional (SIN) no início do ano. Mas, na sequência, ONS emitiu relatório de acesso apontando inviabilidade sistêmica da conexão dos projetos, pois os estudos conduzidos apontaram restrições estruturais sistêmicas graves.

Entre elas, sobrecargas significativas da rede de transmissão, incluindo saturação de corredores no Ceará e Rio Grande do Norte, decorrentes de limitações de fluxo de potência ativa em linhas de transmissão cearenses – uma delas, Quixadá-Fortaleza II, foi o local da falha no mecanismo de proteção que causou o blecaute de 15 de agosto de 2023.

Hub sob risco

O hidrogênio verde é considerado o Santo Graal da descarbonização pela diversidade de sua utilização na era da transição energética, despontando como a melhor alternativa para eliminar as emissões de carbono de caminhões, aviões, siderúrgicas, na fabricação de fertilizantes e de produtos químicos, além de servir como combustível verde para transporte de longas distâncias.

O complexo portuário do Pecém vem se organizando há anos para servir como hub de produção de hidrogênio verde e outras soluções de descarbonização da indústria, com 40 empreendimentos potenciais.

A mineradora australiana Fortescue, por sinal, foi a primeira a obter autorização do Conselho Nacional das Zonas de Processamento de Exportação (CZPE), em outubro para instalar uma planta de hidrogênio verde no complexo, com investimentos de R$ 20 bilhões.

A empresa pediu à Aneel acesso à rede para pouco mais de 1 GW de seu projeto. A Casa dos Ventos solicitou autorização para 2GW. Segundo a Fortescue, o MME vinha indicando que teria entre 1,6 GW e 3 GW disponíveis para a conexão de projetos industriais do Pecém. Mas ONS, barrou os pedidos das duas empresas, alegando que seriam necessárias obras de expansão no sistema.

Especialistas ouvidos pelo NeoFeed afirmam que não há má vontade do ONS, que costuma adotar critérios técnicos para aprovar ou barrar projetos, embora tem sido mais rígido nas análises desde o apagão de 2023.

Donato Filho, diretor geral da Volt Robotics, consultoria que atua no setor, afirma que os casos dos empreendimentos do Pecém reforçam a constatação de que o segmento de geração de energia avançou nos últimos anos numa velocidade muito maior que o planejamento estratégico do setor.

Segundo ele, no passado, as grandes obras – hidrelétricas e térmicas, por exemplo – levavam de sete a 10 anos entre concepção de projeto e inauguração, e o planejamento para construir linhas de transmissão seguia esse modelo.

“Uma novidade das usinas eólica e solar, por exemplo, é que todo o equipamento é feito em fábrica e montado no local, o processo entre planejar e a usina entrar em operação é de dois a três anos”, diz Donato. “Ou seja, a geração avançou e a transmissão, não”, acrescenta. O processo entre projeto e  instalação de uma linha de transmissão pode durar 6 anos.

A construção de um data center – que exige grande quantidade de energia e também de água, para refrigerar os servidores – também é modular. Ou seja, o perfil da carga também mudou. “Instalar um data center que consome entre 10 megawatt (MW) e 30 MW num lugar sem planejamento de rede elétrica vai dar problema”, diz o especialista.

A questão de quanto e onde expandir as linhas de transmissão também é destacada pelo engenheiro e consultor Jerson Kelman. Ele observa que existem muitos projetos de hidrogênio verde na base da intenção, sem sair do papel – e comprometer o planejamento do setor elétrico em cima de uma possibilidade frágil é perigoso.

Ex-presidente da Light e ex-diretor da Aneel, Kelman afirma que os projetos da Casa dos Ventos dizem respeito ao reforço de linhas de transmissão para instalar cargas eletro-intensivas.

“O estudo de viabilidade do empreendimento deve considerar também não apenas o Capex e o Opex, seja para construir datacenter ou produzir amônia verde, mas também o custo necessário para disponibilizar energia elétrica no local, o que significa reforço das linhas de transmissão, e também de água no local, no caso dos data centers”, diz Kelman.

Segundo ele, os investimentos no setor são sempre bem-vindos. Mas lembra que o planejamento dessa carga não foi feito com antecedência. Além disso, é preciso levar em consideração que a conta de expansão da rede será rateada entre todos os consumidores.

“É preciso achar uma solução em que o estudo da viabilidade do empreendimento inclua o custo do reforço do sistema de transmissão, e a alocação do custo, via TUST, leve em consideração que é uma carga concentrada de grande porte que tem de participar, preferencialmente, com sinal locacional”, diz Kelman.

Opções

Há alternativas para que os empreendimentos que somam R$ 100 bilhões da Casa dos Ventos consigam seguir adiante.

O Ministério de Minas e Energia solicitou ao ONS que cálculos sejam refeitos e equipamentos analisados para ver se é possível abrir espaço na rede. A intenção é liberar 4 GW para projetos ultra intensivos em energia elétrica, como é o caso dos data centers e da usinas de hidrogênio da Casa dos Ventos.

Sem essa opção, a solução seria a ampliação da rede de transmissão de energia, cuja construção ficaria pronta apenas em 2032. Nesse caso, os projetos perderiam os benefícios previstos pelo Programa de Desenvolvimento do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (PHBC) – iniciativa do governo federal para impulsionar o setor –, que oferece  R$ 18,3 bilhões em incentivos fiscais entre 2028 e 2032.

Procurada, a Casa dos Ventos não quis se manifestar sobre a decisão do OSN nem quais alternativas poderia sugerir aos órgãos reguladores.

Donato Filho, da Volts Robotics, afirma que o caso deixa algumas lições. Uma delas é que não é mais possível tratar o acesso à rede elétrica como há 30 anos.

Segundo ele, é preciso que o ONS divulgue os dados completos de carregamento de todas as linhas e subestações da rede básica: “Os dados são públicos, mas não são disponibilizados pelo ONS, sem isso não conseguimos ver as opções.”

Luiz Barata, presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia e outro veterano do setor, diz que o episódio envolvendo os investimentos no complexo do Pecém indica que algo não está funcionando bem no setor elétrico.

Ele aponta, entre os problemas, a falta de coordenação entre os órgãos regulatórios e de gestão do governo – o pedido passou pelo Ministério das Minas e Energia e pela Aneel e acabou barrado no ONS.

“O projeto do Data Center, que exige transmissão para o sul do País, era de conhecimento dos órgãos públicos, mas esperaram dar problema para então resolver, não pode acontecer isso”, afirma Barata.

Ele observa o mesmo descompasso para implantação de eólicas offshore, com grande número de empreendedores interessados, mas a regulamentação não avança no governo, nos órgão reguladores do setor nem no Congresso Nacional.

Barata, porém, acredita que os projetos da Casa dos Ventos serão aprovados. “Certamente será encontrada uma solução técnica”, diz ele. “Os empreendimentos devem sair na gambiarra, ou seja, mais caros e com atraso.”

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