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O fim da obrigação de que pessoas maiores de 70 anos de idade casem-se com o regime de separação total de bens começou a transformar o comportamento dessa parcela da população brasileira. A mudança foi decidida há pouco mais de um ano pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e possibilita a liberdade de escolha da divisão patrimonial no casamento para essa faixa etária. Com a nova regra, na Paraíba, 49% dos matrimônios ocorridos entre fevereiro de 2024 e fevereiro de 2025, envolvendo pessoas nessa idade, optaram por regime diferente do que era obrigatório.
Segundo o estudo promovido pelo Colégio Notarial do Brasil — seção Paraíba (CNB-PB), entidade representativa dos Cartórios de Notas do estado, foram registrados, no período de um ano, 284 casamentos em que pelo menos um dos cônjuges era maior de 70 anos. Destes, 139 optaram pelo regime diferenciado, seja comunhão parcial, comunhão universal ou participação final nos aquestos. Já em 145 uniões, o regime permaneceu sendo o da separação obrigatória de bens, até então obrigatória no Brasil.
“Neste primeiro ano de vigência, temos acompanhado um expressivo interesse de pessoas dessa faixa etária em exercer a liberdade contratual assegurada pela decisão do STF”, afirma Lucas Clemente de Brito Pereira, presidente do CNB-PB. “Com o aumento da longevidade no Brasil, esse percentual de 49% reforça a autonomia dessas pessoas para administrar seu patrimônio de acordo com seus interesses, respeitando sua plena capacidade de manifestação de vontade”, ressalta.
A pessoa com 70 anos pode ser presidente da República, senador e decidir as leis, ser juiz de direito ou desembargador, mas não podia escolher o próprio regime de bens — Gabriel Honorato
Decisão
Em 1o de fevereiro de 2024, o STF decidiu que o regime obrigatório da separação de bens para casais maiores de 70 anos pode ser afastado por manifestação das partes. Isso permitiu aos casais, nessa faixa etária, a liberdade de escolher o modelo patrimonial que melhor atenda aos seus interesses, realizando uma escritura pública de pacto antenupcial em qualquer um dos cartórios de notas da Paraíba.
A mudança aprovada pelo STF representa uma quebra de paradigma histórica no Direito brasileiro, uma vez que o regime da separação de bens, em sua face obrigatória por razões etárias, existe desde o Código Civil (CC) de 1916. A princípio, a legislação tornava compulsório o regime de separação para o homem maior de 60 anos e a mulher maior de 50 anos. Já no Código de 2002, manteve-se o critério, apenas igualando a idade de ambos para 60 anos, até que a Lei no 12.344/10 elevou a idade base para 70 anos.
O advogado especialista em Direito da Família, João Erle Fonseca, explica que as legislações anteriores eram baseadas em uma presunção de vulnerabilidade dos idosos, justificada pela idade avançada. O objetivo era preservar o patrimônio e evitar uniões com má-fé. Contudo, essa visão passou a ser questionada ao longo do tempo, especialmente porque os avanços na ciência permitiram uma longevidade saudável aos brasileiros. “Com isso, o STF entendeu que impor automaticamente a separação de bens para a pessoa com mais de 70 anos era inconstitucional, porque essa pessoa não deixa de ser um cidadão”, comenta.
Segundo a tese fixada pelo STF, “nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.642, II do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública”. Cabe ao Cartório de Notas orientar devidamente os interessados nessa faixa etária sobre a nova possibilidade, fornecendo informações claras e acessíveis, garantindo que os envolvidos compreendam as mudanças e exerçam sua escolha de maneira consciente.
Pacto antenupcial, entenda como proceder
O pacto antenupcial é um contrato celebrado pelos noivos para estabelecer o regime de bens e as relações patrimoniais que serão aplicáveis ao casamento ou à união estável. O documento é necessário quando as partes optam por um regime de bens diferente do legal, que é o regime da comunhão parcial de bens, e passa a ser o caminho para as pessoas maiores de 70 anos que desejam contrair uma relação sem a obrigatoriedade do regime da separação obrigatória de bens.
Segundo João Erle, o pacto antenupcial deve conter as regras específicas para a divisão dos bens, algo que varia de acordo com cada casamento. “Por exemplo: se eu tenho uma casa que era da minha mãe e quero deixá-la para os meus filhos, sem que minha esposa tenha direito, isso pode ser feito. Assim como [é possível inserir] multa por traição e qualquer especulação legal que possa surgir”, detalha.
Após definidas as cláusulas, o contrato deve ser feito por escritura pública, de forma física, em um Cartório de Notas ou pela plataforma e-Notariado. Posteriormente, deve ser levado ao cartório de Registro Civil, onde será realizado o casamento. Após a celebração do matrimônio, é preciso encaminhar o documento ao Cartório de Registro de Imóveis do primeiro domicílio do casal, para produzir efeitos perante terceiros e ser averbado na matrícula dos bens imóveis do casal. O regime de bens começa a vigorar a partir da data do casamento e somente poderá ser alterado mediante autorização judicial.
Recomendações
- Gabriel Honorato, especialista em Direito da Família: “a possibilidade de escolher o regime de bens reforça a autonomia dos idosos” |Foto: Arquivo Pessoal
Para Gabriel Honorato, advogado especialista em Direito da Família, a possibilidade de escolher o regime de bens reforça a autonomia dos idosos e corrobora a ideia de experiência e maturidade associada às pessoas na terceira idade. “A pessoa com 70 anos pode ser presidente da República, ser senador e decidir as leis, ser juiz de direito ou desembargador, mas não podia escolher o próprio regime de bens. Essa era uma contradição muito grande que a gente tinha em nosso ordenamento”, aponta.
O advogado ressalta ainda a importância de buscar auxílio jurídico antes de embarcar no casamento — recomendação válida independentemente da idade dos noivos. O planejamento patrimonial é fundamental tanto para decidir o regime de bens como para entender as consequências dessa escolha. “A pessoa pode pensar: ‘Vou casar no regime de comunhão parcial de bens porque meu marido está para abrir uma empresa e, se essa empresa estourar, eu vou ter metade de tudo’. Mas, se o marido entrar em uma ladeira abaixo de prejuízo, essa pessoa também vai comungar desse prejuízo”, alerta Gabriel.
No caso da pessoa com mais de 70 anos, a escolha do regime dos bens pode levar em conta fatores além do próprio patrimônio, como a existência de herdeiros e questões de sucessão. João Erle assevera, contudo, que o idoso deve ter total liberdade para definir o modelo adotado. Os únicos casos em que a família pode interferir são aqueles em que há sinais de abuso ou manipulação, como na existência de maus tratos. “Uma pessoa idosa não tem o vigor físico de um jovem. Então, com o abuso físico, pode surgir essa intervenção da família já no primeiro momento. Havendo a intervenção formalizada, o Judiciário inevitavelmente deve ser acionado. De todo modo, a gente sempre preza que os familiares tenham muito cuidado para não ferir a dignidade do idoso”, comenta.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 29 de abril de 2025.
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A União