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No dia 24 de junho de 1994, Chico César, residente há alguns anos no Sudeste, subiu ao palco da Sala Guiomar Novaes, do Complexo Cultural Funarte, em São Paulo. O público presente assistiu à apresentação de faixas inéditas e de versões únicas do jovem artista, natural de Catolé do Rocha, que estariam, um ano depois, no disco Aos Vivos, que marcou a carreira do paraibano e a música popular brasileira. Celebrando três décadas de lançamento desse importante álbum, Chico faz um novo encontro com o público de João Pessoa, hoje, às 22h, no número de encerramento do 2º Encontro Nacional de Gestores de Cultura, no Centro de Convenções (Polo Turístico Cabo Branco). O evento é aberto ao público.
Antes de Chico iniciar o show Aos Vivos — 30 Anos, quem se apresenta é o seu amigo de longa data, Escurinho, às 20h: apesar de este ter nascido em Serra Talhada, Pernambuco, viveu boa parte de sua vida em Catolé do Rocha, onde conheceu o autor de “Beradeiro”. Essa canção, a propósito, abre o disco com versos sobre esse adjetivo homônimo e capta a essência do intérprete, que se encontra “na beira”, “no limite”. Ao longo desta matéria, ele comenta para A União algumas das composições mais significativas desse trabalho, que serão executadas no fechamento da programação do encontro de gestores.
“Mama África”
Esse foi o primeiro grande sucesso de Chico César como intérprete, regravado um ano mais tarde no seu segundo álbum, Cuscuz Clã. A composição ganhou um videoclipe rodado em Catolé, na rua em que o artista cresceu, com a participação de seus pais, Francisco e Ermelinda. Em março deste ano, ele voltou ao município para registrar uma nova versão do projeto, que deve integrar, por sua vez, um documentário sobre sua vida e sua carreira.
“O clipe de 1996 foi produzido por Anna Muylaert [diretora de Que Horas Ela Volta?]. Ele é muito, assim, fresco, espontâneo. E num take só. O segundo clipe, feito agora, tem um pouco esse espírito, esse desejo de homenagear o primeiro. Obviamente, nem eu sou mais o mesmo homem, nem Catolé do Rocha é a mesma. Há alguns [meninos vestidos de] anjinhos, que estavam no primeiro clipe e que agora estão lá de novo, segurando seus filhos. Afinal, 30 anos se passaram…”.
“À primeira vista”
Assim como em “Templo”, outra faixa incluída em Aos Vivos, Chico retrata o encantamento da paixão. Ganhou uma versão de sucesso na voz de Daniela Mercury, que foi incluída na trilha sonora da novela O Rei do Gado, em 1996. Tornou-se uma das canções mais pedidas nas rádios naquele ano, segundo o paraibano. Outras artistas também se interessaram pela gravação, como Elba Ramalho e Maria Bethânia.
“Daniela ouviu o Aos Vivos através de uma fita cassete mandada pela irmã dela, Vânia Abreu. No dia seguinte, ela já ligou para mim, me chamando pra ir à Bahia, para ter uma conversa com ela. Vi que ela tinha uma intenção muito séria com relação àquela música. Até a gravação do disco Feijão com Arroz, onde está a ‘À Primeira Vista’, ela foi se tornando cada vez mais conhecida. As outras intérpretes que procuraram por ela, eu falei, ‘Olha, eu tenho outras músicas…’”.
“Dúvida cruel”
Parceria de Chico com o paulista Itamar Assumpção, de quem foi próximo até o seu falecimento, em 2003. O artista relata que, ao chegar ao velório do amigo, ouviu da viúva, Zena, um relato carinhoso de Assumpção: “Esse cara é um cara sério. Se você precisar de alguma coisa, conte com ele”. Também em Aos Vivos, o catoleense deu voz a “A alma não tem cor”, de André Abujamra, outro paulista.
“Quem me apresentou Itamar foi Vange Milliet [cantora de São Paulo]. Um dia, ele chegou e me deu uma letra, num papel dobradinho. Era “Dúvida Cruel”. E fui para o apartamento que eu dividia com Zeca Baleiro e musiquei. Ele tinha me pedido assim: ‘Uma coisa assim, movimentada, como só vocês nordestinos sabem fazer’. E é uma das músicas que eu mais gosto, sempre presente nos meus repertórios. Apesar de não ser, vamos dizer, comercial, é uma faixa que funciona muito nos shows”.
“A prosa impúrpura do Caicó”
O trocadilho com o filme A Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen, menciona o município potiguar de Caicó. Baseado num dos versos mais famosos da canção, a reportagem questionou Chico: 30 anos depois, ele continua “catolaico”? “Cada vez mais”, respondeu-nos ele sobre manter sua laicidade, tendo suas próprias definições em relação à religião e à cultura, por exemplo; todavia, ele não apaga a fé nas suas origens, em Catolé do Rocha.
“Essa música eu escrevi nas areias da Praia de Ibiraquera, que fica ali perto de Garopaba, em Santa Catarina. E ainda não conhecia de verdade Caicó, mas eu gostei de fazer esse jogo do ‘Caicó arcaico’. Arcaico não no sentido necessariamente de conservador, mas de profundo, de antigo, algo que está assentado no tempo. Eu sempre gostei de relacionar o local, o regional, fazer esse deslocamento para uma coisa universal, ou que está em um outro lugar completamente distante”.
“Benazir” e “Mulher eu sei”
Duas faixas em que Chico César promove um exercício de alteridade, fazendo uma ode às mulheres e, ao mesmo tempo, admitindo e rechaçando a opressão masculina. A primeira música citada faz referência a Benazir Bhutto, política paquistanesa assassinada em 2007. Para o compositor, os artistas em geral funcionam como uma esponja que absorve as dores e os demais sentimentos dos outros.
“Então, eu acho que o meu jeito é transformar isso em arte imediatamente, devolver para o mundo a dor e o prazer que eu percebo, como arte, como poesia, como representação da manifestação artística. Essas canções não são canções das mais fáceis, né? Mas eu gosto. ‘Mulher Eu Sei’ chegou, inclusive, a ser uma espécie de hit. Foi gravada por Gal Costa e Ana Carolina. Acho bonito que haja essa reapropriação da canção por parte das mulheres. Fico muito, muito feliz”.
“Dança” e “Nato”
Canções que fecham o disco e que resumem, de acordo com o próprio Chico, as suas personalidades pessoal e artística — mantendo-se aberto às influências externas, sem esquecer daquilo que aprendeu no berço. Dentre as referências latentes, está Luiz Gonzaga, que viu tocar em seu município natal, quando era menino. Não à toa, uma música do Mestre Lua também faz parte de Aos Vivos — “Paraíba”, esta uma colaboração com Humberto Teixeira.
“Eu sou muito feliz de ser esse compositor, ‘cantautor’, o cara que está ao violão, cantando suas próprias canções. ‘Beradeiro’, ‘Dança’, ‘Nato’ e muito desse disco é puro suco do grupo Jaguaribe Carne. Tem muito aí do meu aprendizado junto aos conterrâneos Pedro Osmar e Paulo Ró, que me ensinaram a olhar para o mundo, ouvir o mundo, mas ouvir muito a aldeia. Não apenas a aldeia que nos dá origem, mas também a aldeia telúrica, imaginária, mágica, que há dentro de nós”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 25 de abril de 2025.
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Fonte
A União