Cajá segue na luta, 61 anos depois

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Do Sertão da Paraíba às celas do DOI–Codi (Destacamento de Operações de Informação — Centro de Operações de Defesa Interna), em Recife (PE), Edival Nunes da Silva, o Cajá, percorreu um caminho marcado por resistência contra a injustiça e o autoritarismo. Líder estudantil, foi preso e torturado aos 28 anos, em 1978, enquanto contestava a Ditadura Militar. Mas, mesmo passando mais de um ano encarcerado, ele não se calou; virou símbolo de uma juventude que foi às ruas lutar pela verdade. Hoje, aos 74 anos, Cajá retorna à Paraíba, recém-homenageado com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (Unirio), para falar sobre democracia e memória.

Sua história é um lembrete de que ainda há feridas abertas, 61 anos depois daquele 1o de abril, quando o então presidente João Goulart foi deposto pelos militares. Com a proximidade da data, o Jornal A União conversou com Cajá para revisitar sua trajetória e refletir sobre os impactos do regime, que ainda reverberam no Brasil. “Levarei, até meu último dia, a luta pela justiça social, as pegadas do Homem de Nazaré”.

Essa luta, contudo, começou bem antes da universidade. Nascido na Zona Rural de Bonito de Santa Fé, Cajá cresceu com os pés na terra, trabalhando desde cedo na roça, ao lado da família. Dos nove irmãos, apenas ele e mais três sobreviveram à desnutrição, em uma época em que a alimentação era bem precária. Aos oito anos, foi morar em Serra Grande e, algum tempo depois, em Cajazeiras. Enquanto a seca o tornava mais resiliente, Cajá crescia espelhando-se no senso de justiça do pai agricultor, leitor assíduo de jornal e eleitor de João Goulart. “Ele tinha uma influência do getulismo. Sempre se definia pelos candidatos do PSD [Partido Social Democrático], o que me deixava inclinado a pensar que o lado mais à esquerda era o melhor”, relembra.

Fé e militância

Não por acaso, o jovem Cajá já defendia, no auge de sua adolescência, questões como justiça, democracia e direitos. Entretanto, seria apenas com o ingresso no Seminário Nossa Senhora da Assunção que essa “rebeldia” ganharia corpo. A decisão veio por influência da mãe, que enxergava ali uma oportunidade rara de futuro. “Ela insistiu com meu pai para que eu fosse. Dizia que poderia estudar mais e ajudar a humanidade”. Cajá foi, mas com a certeza de que não se tornaria padre; queria entender o mundo.

Na biblioteca do seminário, mergulhou nos evangelhos e nos textos marxistas, conhecendo uma ideia de justiça baseada na partilha. “Percebi que o movimento dos primeiros cristãos era revolucionário — por justiça e igualdade. Acabei descobrindo que o cristianismo original tinha as bases da sociedade comunista”, observa.

Essa descoberta iria transformá-lo para sempre: a fé deu lugar à militância. Ainda em Cajazeiras, organizou passeatas, denunciou o uso político das verbas para a seca e passou a ser monitorado pela polícia. Já em Recife, onde ingressou no curso de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o cerco a Cajá se intensificou. “Tive professor que dizia: ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’. E eu respondia: ‘Eu o amo e não vou sair. Vou lutar para transformar o Brasil de uma ditadura em uma democracia’”, conta. Por lá, ajudou a reorganizar o grêmio estudantil, cuja referência era Jonas José, a primeira vítima do Golpe de 1964. “Ele e Ivan Aguiar foram os primeiros jovens assassinados pelo Exército brasileiro, em Pernambuco, porque organizaram uma passeata”.

Nessa época, Cajá integrou a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) e passou a atuar ao lado de Dom Hélder Câmara, na Comissão de Justiça e Paz. Segundo ele, foi Dom Hélder quem o acolheu e o rebatizou com o apelido que, mais tarde, viraria sinônimo de resistência. Entretanto, à medida que começou a viajar pelo país, para reorganizar a União Nacional dos Estudantes (UNE), Cajá tornou-se, aos olhos do regime, uma pessoa perigosa, cujos passos deveriam ser vigiados constantemente. “Eu sabia que estava sendo perseguido”. Antes mesmo da prisão, ele sofreu duas tentativas de sequestro — uma no Rio e outra em São Paulo —, das quais conseguiu fugir. Na terceira vez, porém, não teve como escapar.

Prisão, em 1978, inflamou o movimento estudantil no país

Na sexta-feira anterior ao Dia das Mães de 1978, Cajá ligou para a namorada, Maria das Graças — com quem se casaria depois —, para combinar os planos do fim de semana. Como ele sabia que o telefone da Diocese estava grampeado, mencionou que o “tempo estava nublado”, quase como um aviso de que algo estava prestes a acontecer. Disse, ainda, para resolverem no dia seguinte, em um encontro na casa de uma colega. Mas ele não apareceu. Foi sequestrado ali mesmo, sem mandado. Cajá conta que a tática era conhecida: levar quem era indesejado para torturar e até matar, sem deixar qualquer rastro. Naquele fim de semana, ele não dormiu ou sequer se alimentou; apenas apanhou, mas nunca em silêncio.

Na segunda-feira, o nome de Cajá foi oficializado na lista de presos do DOI–Codi, já que seu sumiço havia inflamado ainda mais o movimento estudantil. “Minha prisão serviu como combustão para a luta pela campanha das liberdades democráticas, pela anistia dos exilados e companheiros presos. Eles não podiam mais me torturar, porque meu caso virou um escândalo na imprensa”, analisa.

Sua clausura levou à UFPE a primeira greve estudantil desde 1969, que se espalhou para outras universidades. Em meio à reação nacional, a cantora Elis Regina chegou a dedicar um show à liberdade de Cajá — que acabou tornando–se o último preso político libertado da Ditadura.

Companheirismo

No meio desse turbilhão, Maria das Graças permaneceu firme. Ao longo dos mais de 12 meses de prisão do companheiro, ela o visitou todos os domingos em que era permitido. Mais tarde, eles casaram-se, tiveram três filhos e, hoje, são avós de cinco netos.

“É preciso criar uma cultura de ‘nunca mais’”, diz militante

Mesmo preso, Cajá não desistiu de estudar. Chegou a fazer uma prova na cadeia, com a ajuda de uma professora que ousou atravessar o abismo imposto pela repressão. Foi assim que ele conseguiu concluir o curso de Sociologia, em 1983. De lá para cá, seguiu escrevendo, palestrando e, principalmente, resistindo. Afinal, os fantasmas da Ditadura Militar ainda não foram, de fato, exterminados. “Precisamos punir os que golpearam a democracia e criar uma cultura de ‘nunca mais’. A justiça de transição foi aplicada em todos os países que passaram por isso, como Chile, Uruguai e Argentina. O Brasil é o único que não o fez”, alerta Cajá, frisando que punição não é revanchismo, como bem representa a coalizão pela Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia.

Ele também reforça a importância de se entender o que houve durante o Golpe de 1964, para impedir que a história se repita. Essa memória não pode ser apagada, até porque, na visão dele, a juventude de hoje ainda carrega os efeitos da Ditadura, como o desinteresse político e o esvaziamento das Ciências Humanas nas escolas. Nas palavras de sua filha, Mariela Oliveira Nunes, a democracia brasileira precisa de muitos Cajás — gente realmente disposta a transformar o Brasil em um país mais justo.

Saiba mais

Cajá estará em João Pessoa, de 10 a 13 de abril, para participar do 9º Encontro de Comitês e Comissões de Memória, Verdade e Justiça: Norte e Nordeste. O evento, aberto ao público, visa debater e fortalecer a justiça de transição. Além disso, os 61 anos do Golpe Militar serão tema de uma mesa-redonda promovida pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em parceria com a Empresa Paraibana de Comunicação (EPC). O encontro acontece no dia 1º de abril, às 19h, no auditório 411 do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 30 de março de 2025.

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A União

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