A melodia desbravadora de Cátia

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Ao narrar a própria vida, Catarina Maria de França Carneiro a descreve como quem gira um caleidoscópio: a cada nova história contada, as formas e as cores se rearranjam, revelando perspectivas distintas. Sua trajetória é como uma melodia, que se desdobra em múltiplos tons, capaz de ser tocada em diferentes instrumentos — e Cátia de França, como é conhecida, domina todos: da palavra ao piano, da sanfona ao violão, compondo com sua própria existência, em movimento contínuo.

Nascida em João Pessoa, em 13 de fevereiro de 1947, a artista cresceu em uma casa movimentada, de portas abertas para o que acontecia na rua. A infância foi marcada pela presença de sua mãe, Adélia de França, educadora e primeira mulher negra a ocupar esse papel na Paraíba. “Foi com quatro anos de idade que eu vim para a casa na Almeida Barreto, rua do Mercado Central”, lembra Cátia, acrescentando ter vivido até os 15 anos na área, próximo à Escola Moura e Silva, fundada por sua mãe. “Minha mãe não tinha tempo de cuidar de mim full time, então colocou as filhas, minhas cinco irmãs, para cuidar de mim e da casa”, conta a cantora, destacando que seu pai também trabalhava fora, como guarda de trânsito.

Segundo Cátia, as vivências desse período colocaram-na em contato com o que ela chama de “mundo real”. “Caboclinho, índio, papangu, tudo passava na rua, e também os caminhões de frutas e verduras. Era uma rua festejadíssima, mas bem ‘povo’. O que me obrigou a educar minha retina”. Foi nessa época que ela adquiriu muitas das referências que a acompanharam por mais de 40 anos de carreira, além de ter iniciado seu aprendizado musical logo cedo, aos quatro anos, com um piano dado pela mãe. “Meti a mão naquilo. Mas só fui ganhar o piano que tenho até hoje, um alemão, aos 12 anos, quando fiz minha primeira comunhão”, explica a pessoense, recordando que aprendeu a tocar violão na adolescência, quando sua mãe adoeceu e a enviou para um internato em Pernambuco.

Adélia queria que a filha voltasse para João Pessoa como professora, para lecionar em escola primária — e assim Cátia o fez, embora já tivesse definido a música como um norte profissional, caminho por meio do qual seu olhar treinado para a cidade pulsante seria traduzido em arte, consagrada dentro e fora do Brasil.

Cantora defende reparação contra o racismo 

Mulher paraibana, negra e lésbica. Cátia se diz parte de “muitas minorias juntas” e celebra ter ascendido, apesar das dificuldades encontradas. Para ela, sua arte foi esnobada por muito tempo, no país, por conta dessa condição minoritária. “Fui injustiçada, sabe? Tem que haver reparação histórica. Se eu fosse nórdica e ‘galega’, a conversa era outra. Mas não tenho atributos físicos, minha história é de uma mulher negra, de esquerda e lésbica”, enfatiza a artista, desabafando sobre os problemas sociais e políticos atuais: “A gente tem de ter vergonha na cara e dar direito a todo mundo para ser feliz, ter comida no prato, estudo, saúde e não depender de partidos políticos e conluios. Todo mundo sabe da minha luta e não posso admitir conchavos com a direita no mundo afora. Eles odeiam negros, índios, um monte de coisa”.

Quanto às suas lutas pessoais contra o racismo, ela rememora o duro dilema que enfrentava na época em que morou no Rio de Janeiro, nos anos 1970, e, para se manter, trabalhou como datilógrafa em uma empresa. “Era uma firma americana. Eu batia os pedidos de emprego, mas não tinha emprego para negro. E eu lá, negra, batendo pedido. É de lascar, né?”.

Filha de Exu

Cátia também se orgulha de sua relação com as religiões de matriz africana, ligação de infância que se aprofundou na idade adulta. Filha de Exu, a compositora frequenta a casa da mãe de santo que a acompanha, Lúcia de Oxum, a qual atua em um terreiro situado no bairro Valentina Figueiredo, na capital.

Indicada ao Grammy, ela é grata à web pela divulgação de sua obra

A carreira musical de Cátia começou nos bastidores, tocando para outros artistas, como o conterrâneo paraibano Zé Ramalho. “Ele me chamou para ser sanfoneira dele. Agradou-se e me disse: ‘Neguinha, você tem vida própria. Siga sua carreira’”, relata. Apadrinhada pelo cantor, ela lançou, em 1979, seu primeiro disco, chamado “20 Palavras ao Redor do Sol”. O álbum foi gravado no Rio de Janeiro, com a participação de diversos nomes da música brasileira, como Sivuca, Dominguinhos, Bezerra da Silva e Lulu Santos.

Nos anos seguintes, Cátia produziu os discos “Feliz Demais” (1985), “Olinda” (1986) e “Avatar” (1998) — que incluiu contribuições de Chico César, Xangai e Quinteto Violado. Como amostras da vastidão de suas influências musicais e literárias, ela gravou, posteriormente: “Cátia de França Canta Pedro Osmar” (2005), homenageando o cantor e compositor de João Pessoa; “No Bagaço da Cana” (2012), álbum inspirado na obra do escritor paraibano José Lins do Rêgo; e “Hóspede da Natureza” (2016), com alusões à literatura do norte-americano Henry David Thoreau.

Reconhecimento

Totalmente feito na Paraíba e gravado ao vivo, em João Pessoa, em abril do ano passado, o lançamento mais recente da artista, “No Rastro de Catarina”, foi responsável por um voo ainda maior em sua prolífica trajetória, chegando a integrar a lista de indicados ao 25o Grammy Latino, um dos mais importantes prêmios do mercado internacional da música. A obra, gravada ao vivo, no Estúdio Peixeboi, em João Pessoa, concorreu na categoria de Melhor Álbum de Rock ou de Música Alternativa em Língua Portuguesa.

Quando recebeu a notícia da indicação, Cátia pensou que se tratava de um trote. “Esses ambientes são muito fechados, sabe? Mas a internet passou uma régua e nivelou”, observa a cantora, avaliando que a acessibilidade da web ajudou a impulsionar sua obra. “Todo mundo tem um celular na palma da mão. Estão se comunicando o tempo todo de forma on-line. Vejo, nessa geração mais nova, que canta minhas músicas junto comigo, mas que não era nem nascida na época em que elas foram criadas — é uma maravilha tudo isso”, comemora Cátia, sem esconder a satisfação em ver trabalhos de toda a sua carreira ganharem mais divulgação e visibilidade com o auxílio dos meios digitais. “Antes, eu dependia de tocar nas rádios FM para ficar conhecida, e era mais caro para me projetar. Digo que a internet foi minha ressurreição”.

Reencontro

Apesar de reconhecer a importância de ter sido indicada ao Grammy Latino, a paraibana ressalta que o momento mais especial do evento — realizado em Miami, nos Estados Unidos, em novembro de 2024 — foi uma emocionante viagem ao passado. Na ocasião, ela se encontrou com Lulu Santos, um dos artistas que colaboraram com seu disco de estreia e que seria homenageado naquela edição do evento.

“O Lulu me deu um abraço que demorou 45 anos para me dar, porque eu não estava no estúdio quando ele gravou a minha música. Foi memorável. Eu não chorei para não estragar minha maquiagem”, brinca Cátia.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 15 de março de 2025.

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A União

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