Linhões recebem investimentos bilionários e viram “meia solução” para suprir demanda de renováveis

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O setor elétrico brasileiro vive uma crise causada pela sobreoferta de energia injetada na rede de transmissão por parte das usinas eólicas e solares, problema que vem crescendo de forma desproporcional nos últimos anos graças aos subsídios a essas energias renováveis.

Para evitar a sobrecarga na rede, o Operador Nacional do Sistema (ONS) fez cortes de geração em determinadas horas do dia em 1.445 usinas solares, eólicas e hidrelétricas ao longo de 2024, causando prejuízos financeiros de R$ 1,6 bilhão aos ativos renováveis e hidrelétricos afetados, de acordo com levantamento da consultoria Volt Robotics.

Parte da solução desses cortes – curtailment, no jargão do setor – passa pelo aumento das linhas de transmissão existentes no País, que hoje se estendem por 180 mil quilômetros. A rede dos chamados linhões – estruturas gigantescas que transmitem energia elétrica cruzando os estados – deve ganhar mais 38 mil km até 2034, de acordo com o Plano Decenal de Expansão de Energia da EPE (empresa pública de pesquisa energética).

A EPE projeta que o País receberá investimentos de R$ 128,6 bilhões em novas linhas de transmissão e 82 mil MVA (Megavolt-Ampère, unidade de medida da potência elétrica aparente) em novas subestações até 2034.

“Esses investimentos são necessários para resolver o problema dessa má alocação de recursos incentivada pelos subsídios”, diz Eduardo Sattamini, CEO da ENGIE Brasil Energia, em entrevista ao NeoFeed. “Ampliar a rede de linhas de transmissão é a solução.”

Gigante do setor de energia que opera mais de 2,7 mil quilômetros de linhas e seis subestações próprias, a Engie arrematou um dos lotes do último leilão de setembro da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica). Na ocasião, obteve a concessão para implantação e operação de quase 1 mil quilômetros de linhas de transmissão e duas subestações em cinco estados, com investimento esperado de R$ 2,9 bilhões.

Para Sattamini, o curtailment tende a gerar problemas graves ao setor elétrico. “É possível prever quebradeira de empresas geradoras que não conseguem pagar suas conexões porque foram frustradas sem seu faturamento”, afirma.

“A oferta é maior do que a demanda, é o caso que ocorre em regiões onde essas usinas não deveriam estar localizadas, uma vez que deveríamos incentivar a geração perto do consumo”, acrescenta o executivo, referindo-se ao fato de a produção solar e eólica ser em sua maior parte gerada no Nordeste e transportada para o Sudeste e Sul do País, sobrecarregando o sistema.

A boa notícia é que não falta apetite das empresas de energia, como a Engie, em investir no segmento dos linhões – o único do setor elétrico que não tem subsídio e entrega deságio em concorridos leilões, nos quais o vencedor ganha um contrato de 30 anos indexado ao IPCA sem nenhum risco de inadimplência, graças à segurança jurídica oferecida pelos editais.

Desde o primeiro certame após a criação do marco regulatório do setor, em 1999, os investimentos acumulados em linhas de transmissão e subestações no País chegaram a R$ 404,4 bilhões, média de R$ 15,2 bilhões por ano.

No ciclo entre 2022 e 2025 está sendo executado um salto de investimentos de R$ 80 bilhões, média anual de R$ 25 bilhões, fruto de uma antecipação de aumento de transmissão justamente para atender as fontes solar e eólica.

Eduardo Sattamini, CEO da Engie,
Eduardo Sattamini, CEO da ENGIE Brasil Energia

A atratividade do segmento dos linhões levou o André Clark, vice-presidente da Siemens Energy para a América Latina, em entrevista ao NeoFeed no ano passado, a definir as linhas de transmissão – que avançavam 2% ao ano, e hoje crescem 430% – como “o negócio mais sexy do setor”.

Enxuga-gelo

O drama é que, mesmo com esse investimento massivo – como numa operação enxuga-gelo -, o aumento das linhas de transmissão previsto não vai conseguir acompanhar o crescimento da sobreoferta das renováveis.

“Isso ocorre porque o prazo de construção de uma usina eólica ou solar é contado em meses, enquanto a implementação de uma linha de transmissão leva de quatro a cinco anos, incluindo obras, licenciamento ambiental e entrada em operação”, afirma Mario Miranda, presidente da Associação Brasileira de Empresas de Transmissão de Energia Elétrica (Abrate).

Miranda revela que os leilões do segmento de linhas de transmissão só ganharam grande atratividade a partir de 2017, após uma reforma regulatória que mudou os editais, atraindo investidores estrangeiros. Até então, de cada três lotes, só um era arrematado.

Já de olho no crescimento exponencial das fontes renováveis, com apoio da Abrate, a EPE chegou a estudar a ampliação de dois para três leilões por ano. “Mas concluímos que a indústria brasileira não teria condições de dar resposta à demanda extra”, diz Miranda.

Segundo ele, as chamadas empresas EPC (Engenharia, Compras e Construção), que realizam todo o processo de um projeto, desde o planejamento até a entrega, em especial as grandes empreiteiras, tiveram sua capacidade limitada por causa da Operação Lava-Jato.

As médias empresas, que sobreviveram, sofreram com a pandemia até 2022, sem poder usar mão de obra. Essa dificuldade persiste até hoje, apesar o cenário francamente favorável para o segmento de linhas de transmissão.

“Há um déficit de 33 mil profissionais de vários níveis no setor, aprovamos no ano passado a primeira turma de eletricistas do Senai voltada para trabalhar em ambiente industrial, para empregá-los numa subestação na Bahia”, acrescenta Miranda.

A demora de licenciamento ambiental para instalação de uma linha de transmissão é outro gargalo clássico do segmento. De acordo com a Abrate, o tempo médio para o licenciamento atualmente é de dois a três anos – já foi de um a dois anos. Estão em análise atualmente no Ibama entre 30 e 40 projetos novos, além de cerca de 200 projetos que já estão em operação e precisam de alguma ampliação ou adequação.

Miranda afirma que esse acúmulo aumentou em 2024 por conta de uma greve de servidores do Ibama, que se arrastou de janeiro a agosto. O órgão dispõe de apenas 17 profissionais para fazer todos os licenciamentos das chamadas obras federais lineares, que passam por mais de dois estados – o que inclui linhas de transmissão, estradas de ferro, rodovias, gasodutos e oleodutos-, afetando vários setores de infraestrutura.

O recorde de demora para licenciamento ambiental é do Linhão de Tucuruí, de 721 km de extensão, que liga Manaus (AM) a Boa Vista (RR). Leiloado em 2011, levou 14 anos para ter licenciamento aprovado, após acordo da Aneel com a concessionária Transnorte Energia, por causa de impactos que seriam causados à terra indígena Waimiri Atroari, que é cortada por 144,7 km da linha de transmissão.

O acordo judicial para compensação ambiental do projeto soma cerca de R$ 90 milhões. A conclusão da obra – que vai interligar Roraima ao Sistema Interligado Nacional (SIN) – está prevista para dezembro. Com isso, o País deve encerrar 2025 com a implantação de mais 1.500 km de redes de transmissão.

Outra boa notícia é que a EPE e o Ibama firmaram um acordo de cooperação técnica para promover a integração no planejamento e no licenciamento de linhas de transmissão, para reduzir o prazo para concessão de licenciamento.

Elisângela Medeiros de Almeida, gestora da Superintendência de Meio Ambiente da EPE, afirma que o objetivo principal dessa parceria é que Ibama tenha conhecimento prévio dos projetos de linha de transmissão que serão licenciados, especialmente aqueles considerados estratégicos ou com alto potencial de gerar impactos socioambientais.

Mapa das linhas de transmissão no Brasil
Mapa das linhas de transmissão no Brasil

“A cooperação técnica entre as instituições visa contribuir para a agilidade do processo de licenciamento, mas não é a única variável que determina o tempo de conclusão das obras”, afirma Almeida. “Outros fatores, como a complexidade de implantação dos projetos, a necessidade de obtenção de outras licenças ou autorizações e a disponibilidade de recursos financeiros, também podem influenciar o cronograma das obras.”

Ansiedade

Sattamini, da Engie, assinala que a demora do Ibama para cumprir as três fases de licenciamento – o prévio, de instalação e para operação – é o que gera mais ansiedade entre os empreendedores em linhas de transmissão, em especial os licenciamentos executados por órgãos diferentes, como Ibama ou regionais, com critérios distintos.

A greve dos servidores do ano passado agravou o problema. Segundo ele, todas as linhas de transmissão leiloadas recentemente e que estavam em processo de licenciamento em 2023 e 2024 sofreram.

“Isso acontecendo, buscamos agilizar de outras formas, eventualmente mudando a estratégia de construção – no projeto de Asa Branca, alteramos o cronograma de obras começando pela Bahia, onde obtivemos o licenciamento de parte do órgão estadual”, diz Sattamini, referindo-se ao linhão que cruzará os estados da Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo, com um total aproximado de 1 mil quilômetros de linhas de transmissão.

“Numa concessão de 30 anos, a demora de 3 anos para começar a construir representa menos tempo de receita, o prazo é essencial para o empreendedor recuperar o investimento se tiver uma construção mais rápida”, acrescenta o CEO da Engie.

A despeito do problema do curtailment, a Engie aportou, entre 2016 e 2023, R$ 22 bilhões na expansão do seu parque gerador eólico e solar, bem como na construção de sistemas de transmissão. Entre 2024 e 2026, cerca de R$ 14 bilhões de investimentos estão previstos.

Sattamini afirma, porém, que essa energia renovável intermitente – eólica e solar – representa pouco do portfólio da empresa, entre 10% e 15%. Segundo ele, os investimentos concentrados em solar e eólica no Nordeste vão sofrer bastante daqui para frente.

“Esses empreendedores acabaram sofrendo com as próprias ações, pois tomaram decisões com base em elementos regulatórios que deveriam ter sido desativados, que representaram subsídios”, diz. “Na minha visão, isso é risco de empreendedor – ele tomou a decisão de investir sabendo que não teria condição de escoamento.”

O CEO da Engie atribui parte do problema ao crescimento desordenado da Geração Distribuída (GD), que além de ter um subsídio extremamente perverso é a segunda maior fonte geradora de energia e está espalhada em todo o País, com crescimento de 10 gigawatts (GW) instalados por ano.

“Não tem fonte que cresça isso, nem nunca teve – há 15 anos, com as hidrelétricas e termelétricas, crescíamos 3 GW, 4GW por ano”, afirma.

Sattamini pondera que é necessário cortar subsídios e deixar que o setor seja movido pela competitividade entre as fontes, pela racionalidade e pela lei de oferta e demanda. Ele também espera “um governo mais ativo e um Congresso Nacional mais racional” para lidar com a questão.

“Manter subsídios significa deixar o setor doente, e que no médio e longo prazo vai criar pouquíssimas oportunidades futuras para se operar”, diz o CEO da Engie.

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Neofeed

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