As lições da tragédia dos Andes que se perpetuam no tempo

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A viagem até o Valle de las Lagrimas, no coração dos Andes, não é fácil; mas Milagros aguentou bem. Foram dois dias a cavalo, em trilhas improvisadas, até a geleira no alto da montanha, na fronteira da Argentina com o Chile. Ao chegar lá em cima, a quase 4 mil metros de altitude, a menina de 13 anos não falou muito — apenas abraçou apertado o avô.

A expedição é uma espécie de ritual entre Antonio Vizintín e os netos. Como já fizera com os dois irmãos mais velhos de Milagros, quando as crianças atingem idade para suportar o trajeto, ele as leva para a cordilheira.

“Eles querem conhecer o lugar onde o avô esteve”, conta Tintín, como Antonio é carinhosamente chamado por amigos e parentes. “Um lugar onde a tristeza e a alegria se encontram”, completa, em conversa com o NeoFeed, uma semana depois de voltar para casa com a adolescente.

Aos 71 anos, Tintín é um dos sobreviventes da tragédia dos Andes. Protagonista de uma história de tristeza e alegria; mas também de morte e vida. Inteligência e afeto. Sacrifício e resiliência; esperança e disciplina. Espírito de equipe, sobretudo.

Em 13 de outubro de 1972, por um erro de cálculo dos pilotos, o turboélice Fairchild FH-227D, da Força Aérea Uruguaia, se chocou contra a cordilheira. Quarenta e cinco pessoas estavam a bordo. Os 40 passageiros eram, em sua maioria, jovens, como Tintín — atletas da equipe de rúgbi Old Christians a caminho de Santiago, no Chile, para um amistoso com um time local.

Vinte e nove sobreviveram ao impacto, mas apenas 16 foram resgatados vivos, 72 dias depois.

Por mais de dois longuíssimos meses, eles ficaram cercados por gelo e rocha, abrigados no que restava da fuselagem. Sem roupas adequadas, enfrentaram temperaturas de até 40 graus negativos. Famintos, recorreram a uma medida extrema: alimentar-se dos corpos dos amigos mortos.

Aos 19 anos e 90 quilos, Tintín era a força física do grupo — o apoio incondicional aos companheiros de time. Replicava na “sociedade da neve” seu papel no Old Christians.

Na posição de pilar, sua função era ajudar a equipe no ataque e na defesa, aguentando a pressão dos jogadores rivais.

Passados 53 anos do acidente, os sobreviventes continuam a rodar o mundo em palestras sobre as lições tiradas dos 72 dias na montanha, que se perpetuam no tempo.

Empresário do setor imobiliário, no próximo dia 18, Tintín vem a São Paulo. Organizado pela Comexport, maior empresa de comércio exterior do Brasil, em parceria com o Insper, o debate tem como tema fé, conhecimento, valores, resiliência, espírito de equipe e liderança, entre outros.

Veja a seguir, os principais trechos da entrevista de Tintín para o NeoFeed:

O que ficou dos 72 dias na montanha?
Uma experiência impressionante. Vi a essência do ser humano nos momentos mais cruéis, quando a gentileza, a amizade e a misericórdia aparecem. Aprendi sobre a capacidade de superação do ser humano e sobre a importância do trabalho em equipe. Se não tivéssemos trabalhado em equipe, não teria sido possível. Nós fizemos coisas realmente incríveis.

Mas, poderia ter acontecido o contrário: cada um lutando por sua própria sobrevivência, em um ambiente de completo caos. O que determinou a união do grupo?
Desde o início, nosso capitão [Marcelo Pérez del Castillo, morto na avalanche] deu as ordens e a equipe imediatamente respondeu a ele. Havia humildade suficiente para acatar o que ele propunha — mas também havia espaço para melhorar suas ideias, se fosse o caso. Isso foi fundamental para nos unir e para disciplinar aquela equipe, que já era disciplinada. Pequenas funções foram estabelecidas. Alguns se encarregaram de criar uma “máquina” para converter gelo em água. Outros administravam a pouca comida que tínhamos. Havia aqueles responsáveis pela limpeza, pela criação de camas usando os assentos do avião, pela secagem dos cobertores, pela confecção do saco de dormir… Cada um fazia o que tinha de fazer — e o fazia bem. Trabalhando juntas, essa equipes alcançaram um grande êxito: nós saímos daquele lugar.

“Havia humildade suficiente para acatar o que o capitão do nosso time propunha. Isso foi muito importante para disciplinar aquela equipe, que já era disciplinada”

A notícia de que as buscas pelo avião haviam sido suspensas, oito dias depois do acidente, uniu ainda mais o grupo?
Foi um golpe emocional muito duro. Terrível. Nós nos sentimos abandonados. Estávamos sozinhos na montanha e ninguém viria nos procurar. Estávamos por nossa conta. Nossa sobrevivência só dependia de nós. A ideia de que ou todos nós nos salvaríamos juntos ou todos nós morreríamos juntos começou a tomar forma. Esse foi um sinal muito importante para que nos mantivéssemos em equipe.

Quando ficou decidido que você, Roberto Canessa e Feranando Parrado saíram em busca de ajuda, os três passaram a ter alguns privilégios. Ninguém reclamou?
Não havia espaço para reclamação. Aqueles que permaneceram no avião se sacrificaram para que nós estivéssemos em melhores condições. Eles nos deram os melhores lugares para dormir, nós podíamos escolher as roupas e os sapatos, recebíamos o dobro de comida e não tínhamos obrigação de trabalhar.

Sua relação com Deus mudou?
Eu tive uma educação religiosa, mas eu não entendia por que Deus, que diziam ser tão bom e tão gentil, havia nos atirado nos Andes, matando tantos jovens. Não entendia por que os sobreviventes foram abandonados, se viram obrigados a se alimentar com os corpos dos companheiros, depois foram soterrados por uma avalanche, que matou mais gente…. Era como se estivéssemos passando por um purgatório — os bons eram aqueles que morriam porque paravam de sofrer e os maus, os que permaneciam vivos. Eu pensava: “Por que eu tenho de passar por tudo isso? Onde está esse bom Deus? Esse Deus não passou por aqui.” É por isso que dou muito mais importância ao humano, do que ao divino.

O que você define por “humano”?
Quando você não aguenta mais e tem de continuar, o limite do seu esforço é flexível e pode esticar sempre um pouco mais. Empurrar o frio, a dor, a fome… para limites incríveis de resistência. É aquela força de vontade que faz você seguir em frente nas circunstâncias mais difíceis. Deus não tem nada a ver com isso. Essa não é uma história de casualidades. É uma história de pensamento. Houve muito pensamento ali. A maioria das pessoas não tem noção de quão longe os limiares do sacrifício podem chegar. Nós passamos por um teste e sabemos quais limites podemos atingir. Essa é a única diferença entre nós e você.

Você estava preparado para morrer?
Morrer poderia ser uma solução. Uma solução para parar de sofrer, para parar de se sentir mal. Nós fomos dados como mortos e ninguém mais estava nos procurando. A morte era, sim, um possibilidade. Mas eu estava convencido de que se a morte me encontrasse, me encontraria lutando para sair daquele lugar.

“Na vida, é exatamente a mesma coisa. Tem gente que tem a mochila mais pesada e tem gente que tem a mochila mais leve. Não importa: é a sua mochila que você tem de carregar”

No filme A sociedade da neve, fica evidente que, na caminhada por ajuda, você carregava a mochila maior.
Eu sentia que minha mochila era pesada, mas nunca imaginei que ela pesava tanto — entre 30 e 40 quilos, como me contaram anos depois. Não é de espantar que, para mim, tenha sido tão difícil chegar lá em cima. Foi um esforço enorme. Mas nunca me ocorreu ver quanto pesava a mochila de Roberto [Canessa] ou de Nando [Parrado]. No rúgbi, cada um tem seu papel. E, cada um faz o que tem de fazer. E, na vida, é exatamente a mesma coisa. Tem gente que tem a mochila mais pesada e tem gente que tem a mochila mais leve. Não adianta você olhar para o lado e dizer: “Ah, a mochila dele é mais leve”. Porque não importa; é a sua mochila que você tem de carregar.

Nos últimos 53 anos, a tecnologia avançou muito. Como os jovens reagem hoje à história da tragédia?
Hoje há muito mais tecnologia, mas se sua internet cair, você tem de usar isso [Tintín aponta para a cabeça]. Lá em cima, nós tínhamos de fazer cálculos de volume, cálculos de superfície, de geometria… A pessoa tem de estar preparada para coisas que ela assume que não vão acontecer. É isso que eu tento passar aos jovens. A vida não é linear, não é estável. A vida tem altos e baixos. Tem surpresas por todo lado. Temos de nos adaptar às mudanças. Não devemos temer o fracasso.

Qual é a importância do fracasso?
Essa é uma história de tentativas e erros. De tirar ensinamentos de todas as experiências e aplicá-los sempre na próxima vez. A última expedição foi isso. Foi a última porque foi bem sucedida. E foi bem sucedida porque resultou de um acúmulo de aprendizados anteriores.

Alguém os criticou por se alimentarem dos corpos dos companheiros mortos? 
Foi uma decisão muito difícil. Um golpe brutal. Iríamos comer nossos colegas de classe, alguém com quem tínhamos treinado na semana anterior. Estávamos rompendo um tabu religioso, quebrando um tabu moral. Mas não comíamos praticamente nada há dez dias. Chegamos a tentar comer uma mala de couro. Estávamos muito conscientes da decisão que tomamos. Não machucamos ninguém. Era uma decisão de vida ou morte. E isso nos salvou.

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Neofeed

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