Em “Crentes”, um manual para entender o fenômeno evangélico no Brasil

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O antropólogo Juliano Spyer tem uma missão quase de fé: descortinar o universo evangélico para quem, por preconceito, ainda não entendeu a força social, eleitoral e econômica desse grupo de mais de 80 milhões de pessoas no Brasil.

Há cinco anos, ele lançou O povo de Deus, que ampliou o tema para parte da academia — e da esquerda —, refratária a assuntos envolvendo esse grupo religioso. Agora, junto com os colegas Guilherme Damasceno e Raphael Khalil, Spyer apresenta Crentes — Pequeno manual sobre um grande fenômeno.

Em entrevista ao NeoFeed, Spyer afirma que a necessidade de se lançar um manual sobre o fenômeno evangélico está ligada à dificuldade de setores da sociedade, principalmente as universidades, em buscar entender esse grupo de pessoas.

“A cara do evangélico brasileiro é preta, pobre, periférica. É, portanto, urbana e predominantemente feminina. Então, a princípio, esse é um universo fora do universo aqui dos pensadores do Brasil, dos intelectuais, das pessoas que escrevem em jornal”, diz Spyer.

Para o antropólogo, a academia ainda vê esse grupo religioso de uma maneira preconceituosa e superficial. Mas acredita que isso está mudando, principalmente entre empresários, que percebem como o seu negócio pode ser prejudicado ou impulsionado a partir da forma que for apresentado.

“Os evangélicos são um grupo muito sensível a alguns temas morais. E esses temas apareceram com muita intensidade nos últimos anos. Esse tipo de publicidade que toca, de alguma forma, a sensibilidade do campo evangélico, dá margem para descontentamento e afastamento”, afirma Spyer.

Em 237 páginas, o trio de autores explica as estruturas das igrejas evangélicas, noções básicas sobre protestantismo, a importância da música, as gírias, o gênero, a sexualidade e a política. Uma miríade de temas, sempre tratados de forma clara, como deve ser um manual:

Confira a seguir os principais trechos da conversa de Spyer com o  NeoFeed.

O que mudou entre o lançamento de O povo de Deus, em 2020, e o de Crentes, em 2025, principalmente diante de um período de eleição presidencial?
Vejo uma coisa mudando: o entendimento de que o universo evangélico deve ser tratado de um jeito mais interessante. Estou me referindo principalmente a candidatos, políticos, pessoas ligadas a partidos de esquerda, entendendo que existe alguma coisa mais interessante, mais complicada do que simplesmente a visão anterior de que o crente variava entre um coitadinho que não foi para escola e um pastor manipulador carismático.

Com 237 páginas, o livro custa R$ 69 (Foto: Divulgação/Editora Record)

Mas ainda há entraves nesse entendimento sobre os evangélicos, não?
Eu chamo isso de bloqueio cognitivo, esse entendimento racional da importância do campo evangélico — um universo que tem hoje em torno de quase 80 milhões de pessoas. Eu não vi esses partidos de esquerda fazendo um movimento mais profundo no sentido de alterar a percepção de que a esquerda é inimiga do cristianismo evangélico. Isso eu não vi acontecer.

Em sua opinião, por que não? 
Eu tenho a impressão de que é um uma questão geracional, um bloqueio mesmo. Mas esse entendimento começa a vir de outros espaços, principalmente do mercado. Então, pensando em que medida o evangélico também pode ser visto ou como alguém que pode prejudicar o seu negócio, ou alguém que pode ser um consumidor mais ávido, mais envolvido, dependendo também de como você se comunica.

Por que um manual se, como o próprio título do livro indica, os evangélicos são um grande fenômeno? A quem se destina o manual?
O fenômeno evangélico existe fundamentalmente (ou evoluiu fundamentalmente) nas camadas populares do Brasil, do Brasil periférico. A cara do evangélico brasileiro é preta, pobre, periférica. É, portanto, urbana e predominantemente feminina. Então, a princípio, esse é um universo fora do universo dos pensadores do Brasil, dos intelectuais. Foi isso que motivou o manual, o fenômeno continua a crescer fora; ou principalmente fora dos muros acadêmicos. E que é visto por quem está dentro dos muros acadêmicos, em geral, de uma maneira preconceituosa e superficial.

Em relação à economia, então, há uma sensibilidade maior do setor empresarial sobre esse grupo?
Sim, a primeira sensibilidade tem a ver com o tema da perspectiva de um grande número de brasileiros. Um grupo muito sensível a alguns temas morais, que apareceram com muita intensidade nos últimos anos. A publicidade que toca, de alguma forma, a sensibilidade do campo evangélico, dá margem para descontentamento e afastamento. O evangélico, por exemplo, não quer que determinados conteúdos, como os envolvendo sexualidade, apareçam no corpo comercial de televisão durante o dia, quando os filhos estão assistindo televisão. Isso cria uma sensação de distanciamento em relação à marca. Então essa é a primeira coisa.

“A cara do evangélico brasileiro é preta, pobre, periférica. É, portanto, urbana e predominantemente feminina. Então, a princípio, esse é um universo fora do universo dos pensadores do Brasil”

Quais são as oportunidades de negócios oferecidas pelos evangélicos?
No setor de moda e de beleza, por exemplo. Existe muita demanda por esse tipo de produto, principalmente entre os evangélicos pentecostais — que zelam por sua aparência, pela maneira como são vistos e percebidos. A demanda por roupas, por exemplo, ainda é reprimida: roupas que mostrem menos o corpo. Mas a gente pode falar de comida, de bebida, de serviços bancários, de eletrônicos. Para todos esses campos existem oportunidades a serem exploradas.

A direita apostou no voto dos evangélicos para eleger Bolsonaro. Isso se confirmou de maneira efetiva? 
Sim, foi efetiva nas duas últimas eleições presidenciais. Em torno de 70% do voto evangélico foi para o candidato de direita. A esquerda praticamente não conseguiu ser eficiente na comunicação com esse eleitor. As pessoas que continuam votando na esquerda dentro das igrejas e que suportaram essa pressão, se mantiveram de forma discreta. Quando a gente fala da presença bolsonarista, a gente fala dessa presença mais aguerrida, que não aceita a alternativa, que não aceita a diferença, que acha que o outro está completamente errado. Isso cria tensionamentos dentro das igrejas.

Qual perfil dos evangélicos que não apoiam o ex-presidente?
São dois principalmente. O primeiro está nas igrejas que chamamos de históricas ou missionárias. São igrejas mais antigas, tipo batista, metodista, luterana e, em certo sentido, também a presbiteriana. São igrejas de classe média, mais reservadas, em que esse proselitismo não acontece de uma maneira tão enfática. O segundo está nas igrejas pentecostais tradicionais, numa faixa de renda até dois salários mínimos. São pessoas que ainda dependem ou dependeram até pouco tempo atrás da  ajuda do governo — portanto, mantém-se o elo de gratidão.

A defesa do armamento por parte de Bolsonaro foi vista como um entrave para o avanço do então presidente no eleitorado feminino mais pobre. Isso faz sentido?
Faz muito sentido. Nada é mais “anti-Jesus” — como disse o pastor Nelson Gomes, que era da Assembleia de Deus e acabou perseguido — do que uma pessoa com revólver na mão. Tem aí uma série de momentos bastante importantes da história de Jesus narrada na Bíblia, em que Jesus rejeita esse tipo de posicionamento, pela espada, pela guerra, por esse tipo de confronto. E nesse sentido existia aí uma percepção bastante refratária em relação a Bolsonaro —muito ligado ao Exército, à polícia, uma pessoa com uma atitude grosseira. Isso criou de fato um distanciamento entre mulheres, principalmente mulheres evangélicas.

Como os bolsonaristas abordaram essa questão?
Isso foi resolvido de forma muito poderosa pelo envolvimento crescente de Michelle Bolsonaro, atuando de uma maneira muito diligente, muito disciplinada, muito organizada, nos eventos, encontros e reuniões com mulheres. Já ouvi inúmeras vezes que o voto do Bolsonaro hoje é uma coisa que acontece com facilidade como um voto de confiança na Michelle e no que ela pode fazer junto com a atuação de Deus.

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Neofeed

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