A repórter da The New Yorker e o desafio de fazer do jornalismo uma arte da escrita

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Em meados do século XX, surgiu nos Estados Unidos o que se chamaria depois de jornalismo literário, uma mistura da descrição de fatos reais, com impressões do autor e alguns recursos da melhor escrita. Principalmente graças a nomes como Truman Capote, Norman Mailer e Gay Talese, expoentes desse estilo em livros. Nas bancas, a maior vitrine desse refinamento foi, sem dúvida, a The New Yorker, revista fundada em 1925 e que até hoje faz o deleite de quem aprecia textos bem escritos.

Nos bastidores da publicação estava um nome que virou mito, não apenas pelas quase sete décadas em que trabalhou lá: Lillian Ross (1918-2017). Nesse período, ela alcançou uma marca imbatível: escreveu mais de 500 textos longos – além de notas e colunas – e se tornou uma das jornalistas mais cultuadas e admiradas no mundo.

Em 99 anos de vida, Lillian ajudou a moldar a revista ao inovar a forma de contar histórias e fazer reportagens, com seu jeito único de apurar e, depois, descrever o que viu, ouviu e sentiu. Agora, os brasileiros podem ter uma fina degustação de sua produção com Sempre repórter – Textos da revista The New Yorker, último livro que publicou em vida, para o qual selecionou 32 daquelas que considerou suas melhores reportagens.

Com tradução de Jayme da Costa Pinto e posfácio do jornalista e editor Paulo Roberto Pires, o volume reafirma o estilo inimitável de Lillian Ross. Em especial, para compor retratos de todo tipo de pessoa – anônimas, públicas, quase celebridades e famosos – entre atores, diretores de cinema, compositores, estilistas e escritores – como Charles Chaplin, Al Pacino, Federico Fellini e Coco Chanel.

A jornalista tinha um faro raro para identificar boas histórias ou personagens interessantes, sem jamais colocar a fama como motivo principal para escolha. Interessou-se, por exemplo, pela jovem desconhecida enfermeira que resolver disputar o concurso de Miss América em 1949, quando esse tipo de competição fazia enorme sucesso. Ou destacou o grupo de alunos do interior que visitou Manhattan pela primeira vez, ou retratou o escritor Ernest Hemingway, recém-chegado de Havana, que gostava de comprar pantufas na Quinta Avenida.

Na introdução, Lillian fala de sua paixão pelo jornalismo “desde que se entende por gente” e como entrou na The New Yorker, em 1945, quando o editor e fundador da publicação, Harold Ross, teve, um tanto contrariado, de admitir três mulheres na redação – para preencher as vagas de repórteres homens convocados para a guerra.

Ela chegou à The New Yorker indicada por uma amiga, que recusou uma proposta de emprego, mas mandou uma carta sugerindo seu nome. “Quando estreei como repórter da revista naquele ano, era obrigada a escrever usando o famoso ‘nós’ da ‘Talk of the Town’, um jeito de omitir o fato de eu ser mulher.”

Sempre repórter – Textos da revista The New Yorker foi traduzido por Jayme da Costa Pinto

Lilian acompanha, em Hollywood, as filmagens de Emblema rubro da coragem

Lillian Ross ao lado do escritor Ernest Hemingway, um dos retratados nos textos da jornalista

Um dos primeiros textos do livro é de 1948, uma reportagem sobre a patrulha macarthista em Hollywood, na Guerra Fria, contada a partir da figura da cadela Lassie – que era macho, aliás. Há perfis que se tornaram célebres do jornalismo literário, como o olhar encantado da jovem atriz Julie Andrews vendo seu nome na entrada de um cinema pela primeira vez.

Uma história como um filme

Em pouco tempo, seu estilo se tornou inconfundível e conquistou o direito de assinar o que apurava e escrevia. Por toda a vida, diz ela, partiu da ideia de “contar histórias como se fosse um filme”. E pelo menos uma vez na vida chegou bem perto disso, com a reportagem publicada em cinco partes sobre as filmagens de A glória de um covarde, de John Huston, de 1952 – que virou livro, lançado no Brasil –, que estabeleceram um novo padrão na revista, pela inventividade da escrita e sua verve literária.

Lillian também sabia tirar coisas interessantes do que parecia nada. Como a reação (negativa) de clientes adolescentes de uma loja de discos ao lançamento do álbum Sgt. Peppers, dos Beatles, em junho de 1967. Mais recentemente, descreveu a dinâmica doméstica da família do ator Robin Williams; ou visualizou décadas antes um Charlie Chaplin meio perdido em um quarto de hotel de Nova York e os vícios de linguagem de um toureiro do Brooklin.

Em um texto, listou os nomes pelos quais o mais ousado negociante de pedras preciosas do mundo chamava seus diamantes; o cachorro-quente que o tenista aposentado John McEnroe comia antes de entrar na cabine de transmissão de uma partida do US Open; ou o hábito da atriz Ellen Barkin de usar sapatos de salto alto para aliviar as dores causadas por quatro hérnias de disco.

Lillian sabia ser jornalista de todas as formas. Nada lhe escapava. Havia sempre algo a dizer sobre qualquer coisa. Essa visão da profissão ela resumiu assim: “Não importa se já se escreveu muito ou pouco sobre uma pessoa, sempre acho o que dizer”. Como destaca na apresentação, o que faz a escrita brotar de um autor é, em grande medida, um mistério. “Em enigma semelhante, as inspirações de um escritor não se revelam de modo explícito naquilo que ele nos apresenta.”

Ao longo das décadas, Lillian Ross manteve contato com seus entrevistados, e alguns chegaram a se tornar amigos de verdade, graças à importância que a The New Yorker alcançou em todas as esferas, principalmente da cultura. Por isso, foi fácil voltar a procurá-los anos depois e escrever sobre o que faziam naquele segundo momento – algo bastante comum na linha editorial da revista.

Robin Williams, Tommy Lee Jones, Al Pacino, Norman Mailer, Edward Albee, Harold Pinter e François Truffaut são pessoas que revisitou em textos novos. Era sempre animador, conta ela, receber respostas de pessoas que entrevistou.

Talvez a reação mais inesperada tenha vindo de um membro da equipe dos Beatles, cujo nome não revelou, que a telefonou de Londres, em 1967. “Eu havia escrito uma coluna sobre o álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band na seção “Talk”. O disco apresentava um novo conceito de rock’n’roll, e meu artigo era uma espécie de ensaio explicativo. “A pessoa que me ligou disse que a equipe (banda) tinha se impressionado ao ler, pela primeira vez, palavras que revelavam um entendimento correto da relevância musical do disco.”

A jornalista teve vários editores e destacou Bill Shawn, que trabalhava em sintonia tanto com redatores quanto com os seus cobiçados artistas gráficos – uma de suas marcas era o refinamento, a tipologia única, raras vezes apenas levemente alterada. Ele costumava dizer: “Faça o que você, e só você, sabe fazer”. E sempre dava detalhes específicos do que queria. E Lillian seguia à risca, até virar uma instituição dentro de outra do jornalismo.

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Neofeed

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