‘Canções que eu guardei pra você’ soma amores e músicas, com cores vivas, na matemática imprecisa dos desejos


Em cena no Rio, o musical tem roteiro construído com baladas dos repertórios de cantoras como Adriana Calcanhotto, Ana Carolina e Cássia Eller. Marília Lopes (à esquerda), George Sauma e Bruna Guerin em cena no musical ‘Canções que eu guardei pra você’, em cartaz no Rio de sexta a segunda-feira
Alê Catan / Divulgação
♫ OPINIÃO SOBRE MUSICAL DE TEATRO
Título: Canções que eu guardei pra você
Texto: Bernardo Marinho e Valentina Castello Branco com supervisão de Rafael Gomes
Direção: Zé Henrique de Paula
Direção musical: Fernanda Maia
Cotação: ★ ★ ★ ★
♬ Em cena de sexta-feira a segunda-feira no Teatro Clara Nunes, no Rio de Janeiro (RJ), o musical Canções que eu guardei pra você segue roteiro inusitado.
Sem a grandiloquência dos espetáculos montados à moda da Broadway e tampouco sem a pompa dos musicais biográficos, a peça é comédia romântica – confeitada sem o açúcar do gênero e com ótica contemporânea sobre as liberdades afetivas – acrescida de músicas dos repertórios de cantoras identificadas com o universo LGBTQIAPN+, como Adriana Calcanhotto, Ana Carolina, Cássia Eller (1962 – 2001), Ellen Oléria, Maria Gadú, Marina Lima e Sandra de Sá.
Com o toque de quinteto que somente se mostra para o público ao fim do espetáculo, um elenco de seis atores se afina em cena ao interpretar baladas amorosas sem a obrigação de ostentar alcance e/ou opulência vocal.
As canções sublinham a trama centrada nos (des)encontros entre três casais, cujos desejos inesperados movimentam as peças do tabuleiro sexual, mudando subitamente as regras do jogo afetivo. “Sem música, não existe amor”, sentencia Renata, personagem de Karen Junqueira.
Sob a direção de Zé Henrique de Paula, hábil ao orquestrar as caras, bocas e pausas do harmonioso elenco, os atores Bruna Guerin, Felipe Hintze, George Sauma, Guilherme Magon, Karen Junqueira e Marília Lopes se movimentam por cenário de cores vivas criado por César Costa e o próprio Zé Henrique de Paula com estética que remete aos filmes de Pedro Almodóvar. Os figurinos de Marina Sued seguem nesta mesma linha vibrante, afinados com os tons confessionais das canções.
Não por acaso, o público ouve logo no início, na voz de Bruna Guerin (Malu), a balada Confesso (Ana Carolina e Antonio Villeroy, 2001), típica canção do repertório de Ana Carolina, a compositora mais recorrente no roteiro musical do espetáculo. Geminiana (Ellen Oléria, 2013) vem na sequência, seguida por Ser de sagitário (Péricles Cavalcanti), música gravada por Adriana Calcanhotto em 2004 na pele do heterônimo infantil Partimpim.
Na arquitetura de Canções que eu guardei pra você, o público faz o papel de um voyeur que assiste ao desenrolar da trama e ouve o canto das músicas sem somar à própria voz às vozes do elenco, como acontece comumente em musicais que apelam para números em estilo de karaokê.
O único karaokê do musical é o que, no texto de Bernardo Marinho e Valentina Castello Branco, aproxima Malu de Bárbara (Marília Lopes) em envolvimento que altera a dinâmica dos casais, em especial a relação de Malu com Miguel (George Sauma, impagável nas intervenções hilárias do personagem).
As atrizes Bruna Guerin (à esquerda) e Marília Lopes cantam ‘Fullgás’
Alê Catan / Divulgação
Número que marca a união inesperada entre as duas personagens, o dueto das atrizes em Fullgás (Marina Lima e Antonio Cicero, 1984) é instante de beleza cênica e musical. Em outro momento, Linha tênue marca a tensão gerada pela reaproximação do antigo casal formado por Renata com Pietro (Guilherme Magon). A composição é de Dani Black, mas foi lançada em 2011 na voz de Maria Gadú, de cujo cancioneiro autoral o roteiro rebobina Escudos (2009).
No jogo armado em cena, o personagem Túlio é por vezes peça sem movimento no tabuleiro sentimental – como sublinhou o solo metalinguístico do ator Felipe Hintze, intérprete de Túlio – mas ator e personagem têm momento de brilho no segundo ato quando, ao perceber o fim do casamento com Renata, Túlio interpreta em tom introspectivo e doído a canção Por enquanto (Renato Russo, 1985), lançada pela banda Legião Urbana, mas amplificada por Cássia Eller em gravação de 1990.
Nesse ato final, quando a leveza da cena se dissipa com a densidade do desenlace, músicas como A canção tocou na hora errada (Ana Carolina, 1999) e Um tiro no coração (Nando Reis, 2000) – extraída de disco pouco ouvido de Sandra de Sá – acentuam a intensidade dos personagens na resolução das relações que se refazem o tempo todo, diante da constante impermanência dos afetos.
Espetáculo idealizado por Felipe Heráclito Lima e Marco Griesi, Canções que eu guardei pra você soma amores e músicas de forma graciosa na matemática imprecisa dos desejos.
Karen Junqueira (Renata) e Guilherme Magon (Pietro) formam um dos três casais do musical ‘Canções que eu guardei pra você’
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O ator Felipe Hintze brilha em solo metalinguístico do personagem Túlio
Alê Catan / Divulgação
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