André Bonomini: Rua XV e o fogo, um retrospecto

A principal via do centro de Blumenau, referencia comercial, turística e histórica, uma constante metamorfose em 174 anos (e contando) de memórias, fatos e de gente que fez e faz o vai-e-vem entre as curvas sutis do traçado que mantém fiel desde os tempos mais remotos da insipiente cidade nascida da colônia do farmacêutico prussiano.

Quem simplesmente passa por ela como caminho ao trabalho ou divertimento, pode bater pernas sem perceber o quanto de memórias a Rua XV de Novembro guarda. Muito mais que o palco da realidade blumenauense, do mais simples ao mais complexo, a antiga “Wurststrasse” (Rua da Linguiça) é tão eixo motriz do epicentro da cidade quanto qualquer via de trânsito normal e maior que ela. Uma artéria pulsante do comércio, dos negócios, do cotidiano de todos por aqui.

Para-la? Deter seu ritmo por menor tempo que seja? Quando acontece, a cidade para, nas festividades ou nas tragédias mais doloridas. Uma destas abateu-se sem nenhum aviso prévio quando o dia parecia ganho. Uma quinta-feira coberta de fumaça espessa e o som terrível do crepitar de chamas e o tombar de estruturas quando um antigo prédio comercial ardeu em fogo no fim da tarde do último dia 23 de janeiro. Tudo estava parado.

E não se fala apenas de trânsito. Quem tinha lugar para se informar, entendia o repentino movimento de pausa que acometeu ruas e pensamentos naquela tarde. Mais nefastamente, os desavisados movidos pela curiosidade atrapalhavam mais do que percebiam a necessidade dos bombeiros de trabalho constante para aplacar um incêndio, o agravo da dificuldade além do calor e da escassez de água.

Foto: Portal Alexandre José

Foram quatro horas de combate e mais algum tempo de rescaldo que ainda prolonga-se numa silenciosa interdição do trecho do sinistro. Quem passa próximo a Catedral São Paulo Apóstolo ainda parece perceber o reflexo fresco do que acontecera naquele instante. Uns se indignam, outros se entristecem e a pergunta fica sendo a mesma: como tudo começou?

A galeria comercial, também conhecida nas antigas como “galeria dos padres” era parte do patrimônio da Catedral, que tinha abrigada ali também a Ação Social que mantinha desde 1967, com arrecadação sobretudo de roupas e brechó. Abaixo, um agitado burburio comercial que ia da gastronomia corriqueira a moda, passando também por aquela parada básica para a fézinha lotérica de todo dia.

Uma estrutura antiga, datada de próximo dos anos 1930 e 1940 e que, com o tempo, ganhou ajustes e uma fachada imitando enxaimel e enquadrando-se na antiga e polêmica lei de fins dos anos 1980, que concedia descontos no IPTU para este tipo de construção. Por ali, já operou de tudo em matéria comercial: de loja de ferragens a instrumentos musicais, como a tradicional Casa Flesch.

Conhecido também como “coração comercial da XV”, a galeria da então Igreja Matriz em algumas passagens: Acima, na década de 1950 (?) e nesta em meados dos anos 1980, no início da reforma da fachada para a imitação de enxaimel (Arquivo / SMC)

O incêndio na galeria é apenas mais um que parou a cidade e entrou na dolorida galeria de tragédias do fogo que pararam Blumenau em outros tempos. Nos arquivos, entre registros corretos e outros desconhecidos, a Rua XV já viu as chamas consumirem prédios de forma mais lembrada pelo menos umas outras quatro vezes e todas elas com uma enorme comoção pelo medo e forma repentina que aconteceram.

Uma das mais lembradas aconteceu em 1958, quando a então prefeitura da cidade ardeu em chamas durante a noite. Foi pela voz preocupada de Altair Carlos Pimpão, operando o turno da noite na Rádio Nereu Ramos (a época instalada no antigo endereço da PRC-4, Rádio Clube), que o grupamento de bombeiros recém formado na cidade soube do ocorrido.

O susto narrado pelo rádio e que virou tragédia, um dos primeiros grandes incêndios de Blumenau aconteceu na então prefeitura e, justo, atingindo em cheio o Arquivo Histórico (última foto) (Arquivo / Antigamente em Blumenau / AHJFS)

Na chegada, estragos praticamente totais. As paredes mantinham-se em pé por milagre, todo o lado direito do prédio fora consumido pelas chamas e o pior: o arquivo histórico da cidade, foco do incêndio, foi literalmente perdido. Pouco se salvou e foi preciso um intervalo de quase 42 anos para que a estrutura fosse reconstruída, no local onde, hoje, está a Secretaria de Cultura e Relações Institucionais.

As memórias do fogo na Wurststrasse ainda nos levam a 22 anos depois da tragédia na prefeitura. Era o último dia de 1980 quando, no final da tarde, um incêndio começou a consumir a seção de forração de móveis e, logo depois, toda a sobreloja da tradicional Casa Willy Sievert, no endereço onde, atualmente, está localizada a primeira loja da Milium na cidade.

As chamas começaram a tomar volume por volta das 16h15 daquele dia e os bombeiros levaram praticamente uma hora para controlar o fogo. O prédio não era, necessariamente antigo e a causa do incêndio nunca foi divulgada por completo, no entanto a quantidade de materiais inflamáveis naquele espaço ajudou a alimentar as chamas e deixar uma marca de prejuízo grande numa das mais tradicionais casas comerciais da XV naqueles tempos.

Um dos poucos registros do incêndio que consumiu toda a sobreloja da tradicional Casa Willy Sievert, no último dia de 1980. Endereço, atualmente, é ocupado pela Milium (Charles Schwanke / JSC)

Seis anos depois e, novamente, o fogo vindo da Wurststrasse assusta e comove. A tradicional Casa Caça-e-Pesca, obra do casal Willy e Annelise Mischur e um dos pontos mais tradicionais do comercio blumenauense no segmento de pesca, camping e tiro esportivo, foi consumida por um violento incêndio na noite de 12 de abril de 1986, destruindo totalmente a bela fachada que aquele local possuía.

As memórias de quem passou por lá perto naquele instante ou morava nas redondezas são agoniantes: a distancia, eram ouvidas várias explosões e estouros, a maioria por conta da queima do estoque de munição existente na loja. A causa do incêndio até hoje é incerta e a loja sobreviveu ao fogo com muita luta dos proprietários, embora não lembrasse mais em nada a clássica e bela fachada de outrora.

Uma rara imagem da antiga fachada da Casa Caça & Pesca, imitando o estilo enxaimel. Abaixo, uma imagem distante que assusta: a loja em chamas, parece ainda se ouvir os estouros dos cartuchos durante a noite (Henrique Martins / Blumenau Antiga)
(Arquivo / JSC)

Dez anos se passaram até que, outra vez, a Rua XV era interrompida na sua atividade cotidiana pelo fogo. Foi na hora do almoço de 14 de junho de 1996 quando um curto-circuito na parte elétrica de uma loja no térreo do Edifício Catarinense iniciou um violento e repentino incêndio. A força das chamas foi tão grande que até mesmo na Avenida Beira-Rio era possível ver o fogo se alastrando pelo térreo, sobreloja e chegar perto do primeiro andar.

Construído pela RB Planejamento e Construções entre 1962 e 1965, o tradicional prédio sede de grandes empresas como a então Rádio Blumenau (hoje Rádio Arca da Aliança) ainda não tinha os aparatos necessário para retardar as chamas. Sete pessoas foram encaminhadas aos hospitais da cidade intoxicadas com a forte fumaça, entre elas uma cabeleireira, talvez o resgate mais dramático daquela tarde quente de outono.

Almoço indigesto: fogo no Edifício Catarinense parou a Rua XV dez anos depois da tragédia na Casa Caça e Pesca, em momentos dramáticos. Abaixo, a frente do edifício vista da Beira-Rio (Arquivo / JSC / Antigamente em Blumenau)

Nove anos depois, outro incêndio na Rua XV pegou de surpresa a cidade logo nos primeiros minutos de uma manhã de abril. As estruturas das lojas Koerich (moda masculina) e Sulamericana foram consumidas por um violento incêndio. A ação rápida dos bombeiros evitou o pior e quem fosse chegando no centro na parte da manhã logo foi percebendo o que havia acontecido naquele trecho da via.

As investigações posteriores apontam uma causa, se não curiosa, no mínimo revoltante: um andarilho ateou fogo em uma lixeira em frente a Sulamericana, talvez apagando um cigarro ou o fazendo intencionalmente por outros meios. Este nunca foi encontrado e, até hoje, a tradicional loja segue as atividades normais mesmo tendo reduzido a operação na Rua XV com o passar dos anos.

A imprudência de um andarilho levou ao prejuízo, e ao mesmo tempo, duas lojas da Rua XV. Quem passava pela via pela manhã já sabia do fato e não tinha como não ficar impressionado com o que sobrou da Sulamericana e do Koerich Moda Masculina (Douglas Henrique)

São recordações que voltam a mente de entusiastas da história e moradores antigos de Blumenau impossíveis de serem esquecidas com o passar do tempo. Não será, inevitavelmente, a última vez que a tradicional artéria comercial da cidade verá as chamas e tudo passa apenas por um caminho: prevenção constante em construção e métodos que evitem perdas e tragédias.

O incêndio, diferente de uma enchente, não dá previsão de vinda, para tudo o que você está a fazer, destrói e desaparece no controle dos soldados do fogo, as vezes a custa de vidas. Prevenir é o caminho, fiscalizar e evitar que outro cotidiano seja interrompido na velha Rua XV por conta do temor da tragédia do fogo.

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