Através das décadas

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A perda de seu pai Francisco, na adolescência, foi para o artista visual paraibano Chico Pereira, um rito de passagem que o consolidou como chefe de família, na adolescência, antes que as cores das telas e dos muros pudessem lhe resgatar. Sua mãe, todavia, permaneceu viva até os 100 anos: com ela, testemunhou as incertezas da pandemia e o fim da crise, antes de dona Valdemira partir. “Eu estou no meio do caminho entre eles”, comentou Chico, ao falar de seus 80 anos, completados hoje. Celebrando o seu legado plural e relevante para a cultura paraibana, ele estampa a capa deste mês do Correio das Artes, suplemento literário de A União, e rememora, a seguir, fatos históricos marcantes das últimas oito décadas.

Chico comuna

A efervescência política e social dos anos anteriores ao golpe militar de 1964 foram vividas intensamente por Chico, então menino, na sua cidade natal, Campina Grande. O restaurante de seu Francisco, o pai, servia de comitê político para os membros dos partidos locais à esquerda.

Apesar de ser apontado como “filho do comunista” pelos colegas de escola católica, quando a ditadura se consolidou, o artista já compartilhava dos mesmos ideais. “Era um militante da ultraesquerda, a ponto de meu apelido ser Chico Comuna, para você ver a figura radical que eu era. Havia também uma expectativa de que nós teríamos, ali, uma revolução no modelo cubano, com sindicalistas e camponeses”, recorda.

Chegou a confabular, com amigos, um levante contra o regime: com a
ajuda de um cabo do exército simpático à resistência da esquerda, eles invadiriam o quartel da Rainha da Borborema e tomariam de assalto os fuzis militares. Naquela época, Chico andava, no bolso, com uma lista de quem ele iria fuzilar, quando estivesse devidamente armado.

“O chefe do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) era compadre dos meus pais e nos avisou que eu deveria ‘sumir’ por uns tempos. Fui para a fazenda de um tio-avô, em Boqueirão. Quando descobriram que eu não era tão perigoso, voltei à Campina para trabalhar no Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs)”, relata.

O silêncio do cosmo

Quando o homem pisou na Lua, em 1969, ele já desenvolvia, há algum tempo, seus famosos quadros e painéis, fixos em paredes, influenciados diretamente pela pop art, mas tomados por duas de duas grandes paixões — as revistas em quadrinhos e a literatura de ficção científica.

Ele afirma que tinha de esconder esse material embaixo do colchão com medo da censura do pai: “Isso é negócio de imperialismo”, dizia o velho comunista. Chico ainda rememora o fascínio que teve ao assistir a Apolo 11, aterrissando no solo do nosso satélite natural, numa televisão em preto e branco. “Eu sempre fui encantado por corrida espacial, foguetes e essas forças que interagem no silêncio do cosmo”, declara.

Um de seus murais mais famosos, “Tropicália”, eternizou na Faculdade de Administração da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), além do movimento cultural homônimo, liderado por artistas da MPB, o chamado “grande salto para a humanidade”. Chico considera essa uma obra “referencial” em sua carreira, simbolizando a figuração costumeira de sua arte.

“Eu não sabia que com aquela técnica de stencil e spray, eu estava inaugurando, no Brasil, um movimento. Dez anos depois conheci o artista etíope Alex Vallauri, cara que veio usar técnicas similares na arte erudita, como eu. Mostrei fotos do que fiz e ele ficou impressionado”, afirma.

Um instrumento “vulgar”

Chico assevera ser um “filho da história”: detém a técnicas milenares, mas pouco sabe das possibilidades que as novas tecnologias têm a oferecer, na contemporaneidade. Uma conversa com o seu neto, que cursa Computação, fez-lhe refletir sobre o quanto as graduações na área pouco refletem sobre os processos de desenvolvimento desses aparatos.

“No final dos anos 1970, a IBM doou à Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) um equipamento que era o mais moderno na época. Para receber esse computador, a instituição construiu um edifício de dois pavimentos. Hoje, qualquer celular na mão de uma criança é mil vezes mais potente do que aquele computador. É um instrumento ‘vulgar’ para eles”, diz.  

Apesar disso, ele pontua que a arte é uma das linguagens que antecipa muito daquilo que vemos tornado real nas décadas ou nos séculos seguintes. Ele cita os trabalhos do pintor holandês Hieronymus Bosch, que, no Renascimento, produziu complexas imagens sobre o imaginário medieval, prospectando tecnologias, a literatura especulativa do francês Júlio Verne e as reflexões do amigo e também paraibano Braulio Tavares, como exercícios contundentes de narrativas do futuro.

“Mas essa minha arte ‘ancestral’ permanece, deverá permanecer ainda por muito tempo. Não como novidade, nem como meio de vida, porque não tenho mais idade para criar um mercado. No meu caso, ela sobrevive com o meu prazer de pintar”, informa.

Quem é esse maluco?

Chico Pereira consolidou sua luta em prol das liberdades artísticas, menos graças à política e mais por meio das instituições, definindo a si mesmo como “servidor público em tempo integral”. Com 23 anos, assumiu a direção do Museu de Arte Assis Chateaubriand (Maac). Mais tarde criaria o Núcleo de Arte Contemporânea (NAC) da Universidade Federal da UFPB e chegaria a subsecretário de Cultura do Estado. “Quando acontece a abertura política, o vírus ideológico não está mais no meu sangue. Eu acho que eu erradiquei a visão dialética no contexto do pensamento marxista. Compreendi que o mundo é muito mais complexo. A minha política é a arte”, alega.

Ele sustenta que a redemocratização brasileira foi benéfica para a arte, a partir da queda da censura, mas não voltou a ser inventiva como era, quando estávamos no regime militar. Apesar do apartidarismo, Chico não deixa de observar e de se preocupar com os movimentos políticos contemporâneos.

“Quando Bolsonaro elogiou o general Ustra, eu me perguntei: ‘Quem é esse maluco?’. Era um medíocre que partiu para a política. O retorno de Lula também é fruto dessas contradições brasileiras. Alguns artistas continuam apaixonados pelo atual presidente. Eu sigo clamando pela minha liberdade de fazer o que eu quero enquanto artista”, manifesta.

A vida é um sopro

Espectador ativo de todos os fatos abordados por ele anteriormente, retratou ele próprio a pandemia: teve que recorrer aos amigos e à reutilização de materiais para pintar quadros sobre o coronavírus, num tempo em que os insumos estavam escassos; ele planeja, para breve, uma exposição com as telas criadas no isolamento.

“Nunca cheguei a ser um artista famoso do mercado, nem me fixei como outros, num plano de permanência no meu estilo. Minha arte é fragmentada e sou intermitente, um pouco parecido com os rios do Nordeste: quando chove é que eu produzo”, brinca.

Falando sobre seus 80 anos — 60 deles dedicados à arte —, Chico se queixa por continuar a ter um espírito juvenil num corpo que não lhe responde mais como antes. Ainda assim, ele assinala a sua satisfação em continuar na ativa, agradecendo à vida por ter sido generosa com ele, apesar das “extravagâncias” que assume ter cometido, sem especificar quais.

“Certo estava Oscar Niemeyer, quando dizia ‘A vida é sopro’. Cada um vem, faz a sua parte, e vai embora. Nessa altura da vida, aos 80, eu me afasto cada vez mais das questões ideológicas como salvação da humanidade e me aproximo da tentativa de uma redenção particular, por meio da arte”, conclui.   

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 22 de dezembro de 2024.

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A União

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