Combate começa na sala de aula

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“Não quero que a minha filha se sente perto daquele ali”. Foi o que ouviu, da mãe de uma aluna, a professora Djanilda Pereira Barros, na escola estadual em que leciona, em João Pessoa. “Aquele ali” era o coleguinha negro da menina, do qual a mãe não queria que ela se aproximasse

“Para mim, foi chocante ouvir isso. Eles [os alunos] não se discriminam entre si; somos nós, adultos, que fazemos isso”, desabafa Djanilda. Ela ainda insistiu, determinada a mostrar à mãe que, na sala de aula, “todos convivem e aprendem juntos, não há espaço para separação”.

O menino negro não teve conhecimento, mas a colega foi para outra turma por causa dele. Mesmo depois de a professora ter conversado sobre a importância de tratar todos os alunos de forma igual, o pedido da mãe foi taxativo.

Hoje, Dia da Consciência Negra, data que representa um marco de resistência e valorização da cultura afro-brasileira, refletir sobre histórias como essa se torna ainda mais crucial. De acordo com a pesquisa “Clima Escolar e Enfrentamento ao Racismo”, realizada pelo Observatório Fundação Itaú, em parceria com o Equidade.Info, o exemplo da professora paraibana é mais comum do que se imagina.

Dos 373 docentes ouvidos no estudo, 54% já presenciaram episódios de racismo entre os alunos — percepção ainda mais forte entre os professores negros, que, devido às suas próprias vivências, conseguem identificar com mais clareza essas discriminações. Para eles, o índice chega a 56%, contra 48% dos brancos. Além disso, 21% dos professores brancos relataram não saber lidar com situações de racismo, deixando claro o quanto é urgente capacitar os educadores.

O racismo — e os seus desdobramentos em sala de aula — fica ainda mais evidente nas respostas dos 2.889 estudantes entrevistados. A sensação de acolhimento, tão essencial para um ambiente escolar saudável, diminui conforme avançam as etapas de ensino, caindo de 86%, no início do Ensino Fundamental, para 72%, no Ensino Médio. Já entre os alunos negros, apenas 78% se sentem respeitados e valorizados.

Cicatrizes

A falta de acolhimento pode impactar, e muito, o desenvolvimento cognitivo e emocional de crianças e adolescentes. Ao serem alvo de exclusões sutis, olhares “tortos” e palavras ofensivas, eles começam a alimentar um sentimento de não pertencimento que só aumenta com o tempo.

Como explica a psicóloga Liuba de Medeiros, especialista em Psicologia Escolar, os efeitos do racismo muitas vezes são silenciosos e permanentes, deixando marcas que se aprofundam. Ao longo dos anos, esses jovens podem passar a acreditar que “não têm o mesmo valor” e que “não são merecedores”, um peso emocional que, segundo a especialista, pode afetar a forma como eles se veem e se relacionam com o mundo.

Na prática, as consequências mais visíveis são ansiedade, instabilidade emocional e até desmotivação para ir à escola, além de vergonha da própria aparência. Mas, dependendo da intensidade desses sentimentos, o racismo pode levar a quadros de depressão e de abuso de substâncias químicas, entre outras condições. Liuba alerta que nenhum sinal deve ser ignorado. “Os traumas gerados na infância podem repercutir ao longo de toda a vida. Quando um jovem é vítima de racismo, seja um episódio isolado, seja algo contínuo, ele pode ficar mais introspectivo e apresentar sinais de agressividade e baixa autoestima”, diz.

Eu mesma ainda estou lendo muito e aprendendo, porque não é fácil lidar com essa temática sem leitura   —   Djanilda Pereira Barros

Os efeitos são inegáveis, mas, se ninguém nasce racista, como essas discriminações se manifestam tão cedo? Para a socióloga Anna Kristyna Barbosa, tudo começa no ambiente familiar, que é o primeiro espaço de socialização do jovem. “O racismo é um comportamento aprendido”, afirma. Nesse contexto, crianças passam a reproduzir e internalizar preconceitos e estereótipos, absorvendo tanto o que os adultos dizem quanto o que a mídia difunde — muitas vezes, de forma enviesada. “O racismo se perpetua entre as gerações por meio de crenças, valores transmitidos de pais para filhos e práticas culturais, que vão normalizando essa desigualdade”, explica a socióloga.

Ou seja, a probabilidade de, no futuro, a menina que foi retirada da sala de aula se tornar uma pessoa racista é alta. Afinal, a mãe dela, responsável por sua mudança de turma, deve externar os mesmos preconceitos no ambiente doméstico. E é possível supor, a partir do que explana Anna Krystina, que essa senhora também tenha internalizado o racismo no seu núcleo familiar de origem.

Escolas devem oferecer educação que promova a justiça social

Discriminar alguém pela cor da pele já é, por si só, uma violência. A situação se torna ainda mais delicada quando os envolvidos são crianças. Castigos isolados não desconstroem preconceitos, muito menos corrigem uma criação enraizada em estigmas. É nesse ponto que a escola assume um papel muito importante no combate ao racismo, podendo agir na raiz do problema e promover mudanças significativas. “Ela exerce um papel fundamental na percepção do problema e nas providências necessárias na busca das soluções possíveis”, reforça Liuba.

Mais do que ensinar matemática e português, a escola é um espaço para formar cidadãos. Para Anna Kristyna, a instituição precisa assumir sua responsabilidade social. “A sua função está ligada à promoção dos direitos humanos e da justiça social, oferecendo uma educação crítica e reflexiva, que coloque o aluno em contato com a diversidade”, afirma. Essa transformação passa por incluir, no currículo, a história e a cultura afro-brasileira e a indígena, além de estimular debates e promover atividades que valorizem a diversidade.

Liuba acrescenta que a escola deve adotar uma postura de reflexão e restauração, em vez de simplesmente punir ou vitimizar. “A comunidade escolar deve estar preparada — e sempre se preparando — para lidar com o tema”, diz. Isso significa criar espaços de reflexão, oferecer suporte às vítimas (como acompanhamento psicológico) e manter canais abertos com os órgãos competentes. “O racismo deve ser tratado com a devida seriedade”, complementa.

Bom exemplo

Seguindo nessa direção, a professora Djanilda encontrou, na literatura afro-brasileira, uma ferramenta pedagógica para enfrentar o racismo e instigar o respeito pela diversidade. Ela organizou uma biblioteca e passou a utilizar as suas obras nas atividades escolares. A estratégia não só envolve os alunos, mas também os pais, que são convidados a participar das leituras. “Juntei os livros que eu tinha e até comprei mais alguns, para formar essa biblioteca afro-brasileira. A partir daí, comecei a entregá-los aos alunos, para que os pais também pudessem ler”, conta, destacando que, para ela, foi imprescindível trazer a literatura para a sala de aula.

Mas ela reconhece que há muitos desafios pela frente. Com mais de 30 anos de magistério, ela se vê, ainda hoje, em um contínuo processo de aprendizado. “Eu mesma ainda estou me ‘desconstruindo e reconstruindo’, lendo muito e aprendendo, porque não é fácil, para o professor, lidar com essa temática sem leitura. E a gente precisa de recurso, de tempo e de condições para isso”, sublinha.

Sem formação adequada, os educadores podem, mesmo sem intenção, perpetuar estigmas e preconceitos — o que, segundo alerta Anna Kristyna, dificulta o desenvolvimento de uma consciência antirracista entre os alunos. “A escola precisa ter um corpo de profissionais formados para lidar com essas questões, promovendo igualdade e respeito como valores fundamentais”, destaca.

De acordo com a socióloga, educar contra o racismo precisa ser um esforço consciente e contínuo, para que esse tipo de comportamento seja desconstruído e, em seu lugar, seja alicerçada uma sociedade mais justa e inclusiva.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 20de novembro de 2024.

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A União

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