Acesso ao Judiciário ainda é difícil

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“Nascer negro no Brasil já é algo bem difícil, bem complexo, porque nós continuamos na base da pirâmide econômica deste país. Quando a gente faz um paralelo da herança colonial com essa construção contemporânea de hoje, a gente se pergunta onde estão os negros, quanto ganham, o que fazem”.

A declaração é da advogada e vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil — Seccional Paraíba (OAB-PB), Rafaella Brandão, no contexto da representatividade de pessoas negras no Judiciário da Paraíba.

A advogada acredita que a pauta tem avançado e elogia a criação de normas — a exemplo da Lei no 12.288/2010, que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, e da Lei no 14.532/2023, que equipara a injúria racial ao crime de racismo — e de iniciativas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) — como a Resolução no 490/2023, que cria o Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Equidade Racial (Fonaer) —, mas pondera: “ainda é necessário uma evolução, porque nos tribunais as porcentagens de magistrados negros são muito pequenas”.

Segundo dados do Painel de Monitoramento da Justiça Racial, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil possui 299.115 pessoas no Poder Judiciário, sendo 18.681 (6,24%) magistrados e 280.434 (93,75%) servidores. Desse total, 74.079 (24,77%) são pessoas negras, sendo que apenas 2.446 (13,2%) delas fazem parte do grupo de magistrados.

No âmbito da Justiça Estadual, o Tribunal de Justiça da Paraíba (TJPB) é formado por 4.297 pessoas, divididas entre 260 magistrados (6,05%) e 4.037 servidores (93,94%). As pessoas negras, no órgão, são 762 (17,73%), sendo 28 magistrados (10,77%) e 734 servidores (18,18%). Apesar da discrepância, a proporção de negros em cargos de chefia no TJPB (22,89%) é ligeiramente superior à média nacional (21,20%).

O desembargador e presidente do TJPB, João Benedito da Silva, acredita que a ascensão de negros a cargos de chefia ocorre organicamente, pois “não há empenho do Tribunal de se fazer essa seleção”, como forma de garantir uma representatividade nos cargos de liderança. “A escolha é feita por meio dos diretores, que indicam quem deve ficar no cargo. Quem tiver maior capacidade, será colocado nesse cargo de chefia. Então, esse índice acontece de forma natural”, diz.

Resolução no 203/2015

Uma das principais ações para combater essa disparidade racial existente no Judiciário é a Resolução no 203/2015, que determina a reserva de 20% das vagas ofertadas em concursos públicos para negros. A norma foi criada por consequência da Lei no 12.990/2003, que prevê a mesma cota nos certames da administração pública federal, considerando as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas e as sociedades de economia mista controladas pela União.

A Resolução no 203/2015 tinha validade até 2024, mas foi substituída pela Resolução no 565/2024, que estendeu seu prazo até a definição de novos parâmetros pelo Congresso Nacional.

O presidente do TJPB avalia positivamente as cotas, mas faz ressalvas, pois entende que elas devem ser estabelecidas por um período determinado de tempo. “A partir do momento que se estabelece uma cota, o Estado deve tomar medidas para que as pessoas sejam preparadas, para que brancos e negros recebam um nível de educação de modo igualitário”, pontua.

Reparação

A vice-presidente da OAB-PB defende que a Resolução no 203/2015 é uma “questão de reparação”. Na avaliação de Rafaella Brandão, sem as políticas afirmativas, tais disparidades podem se perpetuar por muito mais tempo. “A meu ver, as cotas raciais são uma questão de reparação, não é um privilégio; nós tivemos, na história, sempre a identidade do povo preto como aquele povo que era sempre necessário para servir, então, a utilidade do povo preto era servir”, ressalta a advogada.

Comitê incentiva a equidade racial e o combate à discriminação

O juiz Ely Trindade, auxiliar da Vice-Presidência do TJPB, é outro entusiasta da Resolução no 203/2015. “É uma medida para promover o acesso e a inclusão das pessoas negras. É uma medida necessária para que o Poder Judiciário esteja cada vez mais refletindo a realidade da sociedade brasileira”, analisa. Ely integra o Comitê Permanente de Equidade Racial (CPPER) do TJPB. O grupo, presidido pela desembargadora Maria das Graças Morais Guedes, foi instituído pela Resolução no 36/2023, em consonância com a Resolução do CNJ no 255/2020, que orienta para o fortalecimento da equidade de gênero e raça nos tribunais.

Entre seus objetivos, destacam-se a implementação e o monitoramento das ações afirmativas relativas à promoção de equidade racial no âmbito institucional do TJPB, além da avaliação interna sobre a representatividade de pessoas negras em cargos do Judiciário.

Segundo Ely Trindade, o papel do CPPER consiste no estímulo ao ingresso de pessoas negras no quadro do Poder Judiciário, de maneira que isso seja um “reflexo positivo” da sociedade.

“É mais do que uma questão numérica. Buscamos proporcionar uma efetiva participação de servidores negros nos cargos de direção, de gestão e de planejamento do tribunal, mas também promovemos ações, campanhas e políticas que propiciam um ambiente antirracista, acolhedor e justo para todos os componentes do Poder Judiciário”, explica o juiz.

Omissão

Um dos problemas enfrentados no TJPB, assim como em outros tribunais pelo país, é a declaração de heteroidentificação. Conforme o Painel de Monitoramento da Justiça Racial, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, o TJPB possui um alto índice de pessoas que não declararam sua raça/cor: 1.896 servidores, 140 magistrados de 1o grau e 11 magistrados de 2o grau.

Para o juiz Ely Trindade, a participação dos servidores e magistrados no censo do Tribunal é fundamental para “a conscientização racial, proporcionando dados que sirvam de estudos e planejamento para a promoção da Equidade Racial”. Ele enfatiza ainda que “o comitê atua tanto na divulgação e no estímulo para que as pessoas possam participar, como também promovendo a constante coleta de dados e a realização de censos, de maneira mais próxima e efetiva para que chegue a todos os integrantes do Tribunal”.

Escolas de Magistraturas são instrumentos na luta antirracista

As Escolas de Magistraturas são responsáveis pela formação continuada e pelo aperfeiçoamento dos magistrados e, dessa maneira, apresentam-se como importantes instrumentos de fomento à equidade racial.

Segundo a Pesquisa sobre Negros e Negras no Poder Judiciário, desenvolvida pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2021, o debate racial ainda é incipiente. De acordo com o levantamento, que analisou 89 escolas judiciais pelo país, 74,2% das escolas não possuem normativas complementares/internas sobre a questão da diversidade racial.

A juíza e diretora-adjunta da Escola Superior da Magistratura da Paraíba (Esma-PB), Antonieta Nóbrega, avalia que a sociedade brasileira é “estruturalmente racista, [mas] de modo geral, não se considera”. Um dos maiores desafios apontados pela diretora diz respeito à inclusão da temática racial nos cursos e atividades da escola.

“Como em todos os segmentos profissionais, de início, o público da Esma não compreendia a necessidade de cursos voltados à reflexão acerca das desvantagens históricas de condições enfrentadas pelos negros e perpetuadas em atitudes cotidianas de uma sociedade estruturalmente racista. Com a sensibilização, por meio das ações educacionais, a adesão a essas formações se robusteceu e, hoje, a procura por cursos e oficinas nessa temática é bastante significativa”, assegura a diretora.

Antonieta Nóbrega salienta que a escola promove anualmente diversos webinários, oficinas e cursos livres voltados à afirmação dos direitos humanos, nas diversas dimensões das questões étnico-raciais. Entre as atividades promovidas pela Esma-PB, com o objetivo de visibilizar a temática, a diretora destacou a realização, em julho de 2024, do evento “Racismo não é opinião. É crime!”, e do 2o Congresso Internacional de Direito da Esma (Cidesma), que começa hoje e se estende até a próxima sexta-feira (22).

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 21 de novembro de 2024.

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A União

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