A decodificação natural

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Certa vez um amigo me fez uma provocação:

– Eu não sou como vocês, críticos, que assistem a um filme pensando “na fotografia”. Eu assisto para me divertir.

Parênteses. Vamos entender aqui “me divertir” como “entreter”, abrangendo aí, também, “se emocionar”, “refletir sobre alguma coisa” ou outras dessas reações que o filme pretender provocar no espectador. Fecha parênteses.

Bom, meu primeiro impulso como resposta foi:

– Mas eu também assisto ao filme “pra me divertir”. Depois é que vou pensar porque eu gostei ou não.

Essa conversa aconteceu há uns 15 anos. Hoje, eu penso diferente. E acho que ele tinha razão.

Porque quando você ama uma arte e procura saber mais sobre ela é natural consumi-la de uma maneira diferente daquela pessoa que vai apenas “se divertir”. Você, naturalmente, passa a admirar a maneira como aquela arte é produzida. Começa a gostar não só da obra, mas das ideias, mecanismos e sacadas do autor para chegar àquele resultado.

Eu adoro música e até gosto de observar quando John Lennon e Paul McCartney juntaram pedaços de música de um e de outro para construir, sei lá, “We can work it out” ou “A day in the life”. Mas não sou capaz de discutir notas e acordes com um especialista.

Suponho que alguém que tenha um especial interesse na área, que leia bastante sobre, “veja” logo uma virada de bateria diferente, ou quando o cantor mudou o tom de maneira interessante e coisas assim.

Um especialista em teatro vai ver, enquanto assiste à peça, se a iluminação está ou não adequada sob seu próprio ponto de vista, identificar posicionamento dos atores, seus movimentos de corpo e tal. Ou que um diálogo foi uma bela sacada ou que não foi escrito adequadamente para aquele personagem.

Há quem leia histórias em quadrinhos só para passar o tempo, e há quem saiba das técnicas e estilos e vibre com uma virada de página inteligente, com o uso fora do esperado da diagramação dos quadros ou da composição visual.

O especialista em literatura, por sua vez, vai ver os detalhes de cada capítulo, se a abertura do livro é eficiente e criativa, se um personagem está mal desenvolvido, se o autor só está copiando ideias de um outro, vai conseguir ver entre as linhas como aquilo ali foi trabalhado. Não com uma lupa, “procurando defeitos”, mas a coisa simplesmente se decodifica diante de seus olhos. Ele não pode evitar.

E é por isso que em uma exposição de artes visuais tantas vezes a obra desperta o interesse de alguém que estuda arte, que vê ali um diálogo com a história da pintura ou um deboche contra o senso comum, ou uma expressão de seu interior, enquanto outros observam com cara de “hein?” porque a obra não se comunica com quem não tem um conhecimento profundo ou disposição para entrar automaticamente na do artista.

Isso vale também para o meu amigo, jornalista esportivo que, certamente, não assiste um jogo “só para se divertir”, mesmo que queira. Ele, automaticamente, porque conhece muito do assunto e o acompanha há muitos anos, vai perceber a tática de cada um dos times, se o posicionamento desse ou daquele jogador está certo ou errado, se o esquema 3-4-3 é melhor para essa partida 4-4-2. Se a entrada do jogador tal na posição A pode mudar a partida, mas na posição B será um desastre. Coisas que o torcedor comum costuma achar que entende, mas é puro… bem, achismo mesmo.

Deixando cláro que, sim, eu entendo o futebol muitas vezes como arte.

Então, com o cinema também é assim. O jornalista especializado pode até asisstir a um filme com a postura de só curtir a sessão, mas não tem jeito. Se eu vejo O Poderoso Chefão, é claro que vibro com a primeira frase, ainda na tela preta, “Eu acredito na América”, percebendo tudo o que ela significa. E que a primeira imagem é a de um personagem totalmente coadjuvante, enquanto a câmera vem se movendo para trás até aparecer, de costas, o Dom Corleone vivido por Marelon Brando.

É inevitável achar incrível que Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças anda para trás e para a frente ao mesmo tempo. Ou entender como o diretor Sergio Leone resolveu mostrar o bandidão que matou uma família inteira de costas em Era uma Vez no Oeste até a câmera girar e mostrá-lo de frente só para o público da época tomar um susto vendo que é o Henry Fonda, que só fazia heróis.

Coisas assim. O observador especialista de uma arte identifica os grandes momentos, as más escolhas e formula suas opiniões sobre isso sempre com base do que conhece, sabendo como a linguagem funciona e como uma produção acontece.

E um jeito não é melhor que o outro. Cada espectador vai assistir a um filme buscando o que interessa a ele, seja dar uma risada, derramar umas lágrimas, ver uma história extremamente bem contada, encontrar uma crítica social de que ele compartilha ou se deparar com algo que fuja do tradicional.

O ponto de vista especializado ou não especializado são pontos de vista compartilhados na base por muitas outras pessoas. E todo mundo que ama alguma arte, ou algumas, é também um observador não especialista de várias outras.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 12 de novembro de 2024.

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A União

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