Uma vida mergulhado na arte

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Num dos últimos textos escritos para A União, o multifacetado Carlos Aranha, falecido ontem, aos 78 anos, comentava sobre o ídolo Gilberto Gil e encerrava mais uma edição da coluna “Essas Coisas” com uma frase sobre memória e sobre legado: “As pessoas mais infelizes são aquelas que só compreendem o infinito e a eternidade para a frente; não aceitam infinito e a eternidade para trás”. Asseverando o texto, um retorno ao seu passado traz o depoimento de amigos sobre a eternidade e o infinito do jornalista, músico, escritor e agitador cultural, reconhecido por sua importância nesses segmentos, e que será sepultado hoje, na capital, no Cemitério Parque das Acácias, às 10h. 

Aranha foi presença importante na música e no jornalismo paraibanos | Fotos: Arquivo A União

Aranha sofria de demência e estava internado em uma casa de acolhimento particular de João Pessoa havia dois anos. Vinha sendo acompanhado pelo músico e amigo Gustavo Magno, desde que este assumiu sua curatela. Magno recorda que o encontro com o mestre se deu no fim dos anos 1980, quando se uniram para a gravação do single “Sociedade dos poetas putos” — com letra, música e voz de Aranha.

“Depois disso continuamos com nossas parcerias, participando de festivais, principalmente em Campina Grande. Ele gostava de incentivar os novos artistas, criando projetos e liberando apoio, por meio de verba, quando estava ocupando cargos públicos na cultura”, revela o colega.

O olhar de Aranha também esteve dedicado às artes visuais. Magno elenca a exposição A Paixão de Cristo em Outdoor, dos anos 1990, que trouxe para o entorno da Lagoa do Parque Solon de Lucena, na capital, painéis que retratavam a Via Crucis, sob os traços e as cores de artistas paraibanos.

Aranha deixou um vasto material de arquivo, em crônicas, letras de músicas e poemas, que, segundo o seu curador, devem ser catalogados e transformados em um projeto literário, no futuro.

“Ele esteve à frente do Departamento Cultural da Prefeitura de João Pessoa, participando das decisões políticas do setor. É uma perda irreparável para a arte paraibana”, lamenta Magno.

Imortal e plural

Membro da Academia Paraibana de Letras (APL), Aranha ocupava a cadeira de número 29 da instituição. O poeta Sérgio de Castro Pinto sinaliza que sua produção literária unia os fatos concretos do dia a dia às suas emoções em torno daquilo que decidia transcrever para os versos que chegaram a público.

Ter nomeado sua única coletânea de poemas como Nós (com o subtítulo An Insight), ainda corrobora com sua pluralidade de atuação na literatura, segundo Castro Pinto. “Já se tornou lugar-comum bater nessa tecla: as manifestações artísticas não mais ocupam compartimentos estanques, isolados. E Aranha soube mesclá–las dando-lhes unidade, transformando-as numa túnica inteiriça, inconsútil”, declara. 

Belchior, Aranha, Gilberto Gil e o artista plástico Carlos Pereira: muitos encontros | Fotos: Arquivo A União

O jornalista Kubitschek Pinheiro, também colunista de A União, recorda que a amizade entre eles nasceu de uma divergência profissional na redação do extinto Correio da Paraíba, onde Aranha atuou como editor do Caderno 2.

Superadas as diferenças, Pinheiro tornou-se próximo de Aranha até o fim de sua vida. Recentemente, indignou-se com os colegas que o visitavam no abrigo e expunham sua situação nas redes sociais; em desagravo, ele publicou um texto nomeado “Deixem Aranha em paz”, repostado ontem, na internet. “Durante esse período em que ele ficou internado, eu sabia que era uma preparação para ‘zarpar’. Ele estava tranquilo, em paz. Eu devo a ele tudo o que aprendi sobre jornalismo cultural”, agradece.

Jãmarrí Nogueira, repórter e assessor de comunicação da Fundação Espaço Cultural da Paraíba (Funesc), também trabalhou com Aranha mais de uma vez. Rememora as vezes em que puxava assuntos aleatórios sobre o cotidiano, sem que o colega deixasse de datilografar sua matéria.

Essas conversas também passavam longe da monotonia: dono de memória e conhecimento prodigiosos, mantinha- -se permanentemente informado sobre qualquer pauta. “A coluna ‘Essas Coisas’, que também foi publicada no Correio e em O Norte, na verdade era sobre muitas coisas, falando sobre esse Aranha de muitas percepções. O que ele produziu em vida lhe garantiu a imortalidade muito mais do que o título da APL”, alega. 

“Sociedade dos poetas putos” é o registro musical de Aranha, assim como “Nós – An Insight” reúne poesias do autor | Fotos: Divulgação

 Tropicalista paraibano

A atuação de Aranha junto a vanguardas injetou o Tropicalismo na Paraíba, nos anos 1960. Considerado um dos representantes desse movimento em nível local, esteve em uma apresentação emblemática com o Grupo Trapiche, no Liceu Paraibano, ocasião em que foi atingido por ovos, atirados pela platéia pouco receptiva. 

Os palcos espraiaram ainda mais a trajetória do artista: como dramaturgo, adaptou o espetáculo Diário de um Louco, do russo Nikolai Gógol, que lhe rendeu um prêmio de direção, à época. Ainda aventurou-se no cinema, realizando o curta Libertação em meados de 1968.

O governador em exercício, Lucas Ribeiro, emitiu nota de pesar lamentando a partida do paraibano, desejando condolências à família e pontuando que ele era “uma das referências entre os intelectuais paraibanos”. “Aranha se destacou na comunicação paraibana como editor de Cultura nos veículos impressos da Paraíba e ainda como presidente da Associação Paraibana de Imprensa [API]”, relembra o gestor.

Já Naná Garcez, diretora-presidente da Empresa Paraibana de Comunicação (EPC), recorda que conviveu com Aranha em seu começo no jornalismo, como repórter. Ela evoca os espetáculos produzidos pelo artista na capital, incluindo um show com Gilberto Gil, em 1989. “A mim, impressionava a rapidez com que redigia: fazia uma pesquisa, checava as informações e produzia um texto que era super interessante. Tinha uma personalidade singularíssima. E, sem dúvida, deixa uma lacuna no setor cultural da Paraíba”, finaliza Naná.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 12 de novembro de 2024.

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A União

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