Da descoberta à confissão: os detalhes do caso da francesa dopada e estuprada pelo marido e outros 50 homens

O Fantástico visitou Mazan, um pacato vilarejo no sul da França, onde Dominique Pelicot colocou em prática um plano pavoroso. Da descoberta à confissão: os detalhes do caso da francesa dopada e estuprada pelo marido e outros 50 homens
O dia passa sem pressa em Mazan. Uma rotina que parece inalterada desde o século 14 – data das construções mais antigas do centro histórico. Mas um pacato vilarejo de seis mil habitantes, no sul da França, nunca mais será o mesmo.
Era lá que Dominique Pelicot colocava em prática, de duas a três vezes por semana, um plano pavoroso. Dopava a mulher, Gisele, com uma combinação de sedativos que ele misturava à comida do jantar.
Na internet, oferecia o corpo desacordado dela em um site que promovia atividades ilegais. Aos homens que batiam à porta, ele explicava que era proibido usar perfume ou fumar no quarto do casal, para não deixar rastro.
E assim foi durante dez anos. Uma década de abusos sexuais organizados e filmados pelo próprio marido em Mazan.
Nesse tempo, Gisele teve problemas inexplicáveis de saúde – apagões de memória, queda de cabelo e de peso. Quando a fala começou a enrolar, achou que pudesse estar com um tumor no cérebro. Em momento algum desconfiou do homem com quem vivia há 50 anos, pai dos seus três filhos, avo dos sete netos.
Os médicos e ginecologistas com quem ela procurou explicações também nunca cogitaram violência sexual.
Descoberta dos crimes
Em setembro de 2020, Dominique Pelicot foi preso. Pelos crimes que cometia contra a esposa? Não. Por filmar debaixo da saia de outras três mulheres em um supermercado.
Foi aí que a polícia francesa descobriu mais de 20 mil fotos e vídeos do pesadelo vivido por Gisele. Durante dois anos, investigadores se debruçaram sobre o material e identificaram 50 dos mais de 70 estupradores.
Todos os moradores locais ou de cidades vizinhas, com idades entre 26 e 74 anos. Pais de família com empregos na região: bombeiros, enfermeiros, agentes penitenciários, aposentados. Nenhum saiu correndo. Nenhum denunciou o que acontecia entre quatro paredes nessa casa.
Ao ver as imagens, Gisele identificou apenas um dos homens: um amigo ciclista do marido. Mais de 20 suspeitos ainda não foram reconhecidos.
Julgamento
A 30 minutos dali, na cidade histórica de Avignon, jornalistas apontam suas câmeras para os réus. A maioria tenta se disfarçar. Máscara, capuz, cabeça baixa, boné. Mas alguns não se intimidam com a presença de policiais e da imprensa.
Os acusados chegam cedo ao tribunal de Avignon para mais um dia de depoimentos no julgamento desse escândalo nacional. Muitos enfrentam até 20 anos de prisão, a pena máxima para estupro na França.
Já a vítima se mostra ao mundo. Uma coragem que inspirou uma onda de solidariedade e admiração. Gisele Pelicot, francesa de 72 anos, se tornou um símbolo da luta das mulheres contra o abuso sexual. Pelas leis francesas, vítimas de estupro têm direito a julgamentos fechados, que correm em sigilo, sem a revelação dos detalhes do crime. Mas Gisele abriu mão do anonimato.
“Esse privilégio sempre foi considerado uma forma de proteger a intimidade da vitima. Mas esse caso nos mostrou que é também uma forma de esconder da sociedade os crimes de estupro. O que a Gisele Pelicot fez foi escancarar como esses processos funcionam – muitas vezes causando mais humilhação às vítimas”, diz Audrey Darsonville, professor de direito penal na Universidade Paris Nanterre.
Depoimento do ex-marido
Essa semana, ao lado dos filhos, sempre presentes, Gisele ouviu, durante quase quatro horas, o depoimento do agora ex-marido.
“Sou um estuprador, assim como todos os outros réus presentes nessa sala. Todos eles sabiam e não podem dizer o contrário. Mas eu ainda amo minha esposa e peço desculpas, ela não merecia isso” , diz Dominique.
Gisele não reagiu, não deixou transparecer nenhuma emoção. No dia seguinte, diante dos juízes, disse:
“Não existe perdão. Esses homens são imorais”.
O que dizem alguns dos acusados
Na última quarta-feira, um outro homem – conhecido de Dominique Pelicot – e que também está preso, admitiu que fez o mesmo com sua própria esposa, com a ajuda de Dominique.
Já a defesa de alguns acusados alega que eles achavam que a esposa de Dominique era cúmplice do suposto jogo sexual e estava apenas fingindo que dormia.
Gisele rebateu:
“É humilhante ouvir isso. Eu não tinha como consentir – estava sedada. Estupro é estupro, não existe atenuante”.
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