‘Na Rússia, os empresários de hoje foram os comunistas de ontem’

O maior país do mundo — no quesito extensão territorial — é peça-chave para o entendimento da dinâmica geopolítica contemporânea. Na Rússia, as ideias comunistas da revolução ainda ecoam na política e na sociedade, um exemplo é o temor que os habitantes do país nutrem pela polícia, que exige passaporte dos cidadãos que querem simplesmente mudar de cidade. O país governado por Vladimir Putin sempre surpreende quando o assunto é “censura”, “perseguição” e “espionagem”.

Para falar sobre a Rússia histórica e contemporânea, convidamos Regiane Bertini, autora de 100 Mitos da Revolução Russa. Regiane é escritora, professora e historiadora paulistana. Ela é formada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, na qual obteve especialização em história. A escritora é fluente no idioma russo, o que fez com que ela procurasse autores nativos e direcionasse suas pesquisas para enfoques mais atuais e inovadores que os contidos na historiografia tradicional.

Confira a entrevista completa.

Sim, mas a verdade é que o comunismo perdeu território. Isso porque a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas foi desintegrada. O comunismo perdeu territórios como, por exemplo, a Lituânia, a Letônia, a Polônia, a Finlândia e outros no leste europeu. Eu percebo que o domínio do comunismo não está no âmbito territorial, mas no campo das ideias, da ideologia. As ideias revolucionárias estão nas universidades, na classe jornalística.

A literatura russa é referência, e seus autores (como Dostoiévski e Tolstói) são citados pelo grande público. É correto afirmar que, em função da perseguição comunista, a literatura da Rússia tornou-se “literatura dissidente”? Por quê?

Diversos escritores russos foram perseguidos pelo sistema; muitos, inclusive, tiveram de abandonar o país. Eles tiveram suas obras castradas. Quando as pessoas são impedidas de dizer as coisas, quando não há liberdade de expressão a literatura pode se tornar pueril. A literatura russa pós-soviética é uma literatura infantilizada, que versa sobre as coisas simples do cotidiano. Isso porque era proibido tocar em assuntos delicados, obscuros. A literatura do país perdeu muito do seu brilho. Na época do Império Russo havia críticas contra o governo, e a crítica é importante. Acho que por mais que o governo vá bem, nós temos de criticá-lo para que ele fique melhor, mas os comunistas não tinham essa perspectiva.

A Rússia sempre foi muito boa no quesito táticas de guerra cultural. E, com relação à política russa, é difícil falar em troca de poder. Isso porque a União Soviética caiu não porque o povo pediu a democracia, ou os políticos aceitaram a democracia; o regime democrático no país foi implicado pelo fator petróleo. Nos anos 1960, quando o preço do petróleo aumentou, a Rússia criou uma estrutura eficiente para o processamento do combustível. Mais tarde, na década de 1980, o petróleo diminuiu, e o país começou a se endividar. A Rússia tinha contraído empréstimos com o Ocidente, e um dos requisitos do acordo era a redemocratização — feita na marra. Então, ela não foi um país com uma democracia graúda, a elite comunista jamais saiu do poder. Na reforma política conhecida como perestroika as lideranças russas continuaram a fazer acordos fraudulentos. Na Rússia, os empresários de hoje foram os comunistas de ontem; eles continuam com a mesma cabeça. Ele mantêm as mesmas táticas da KGB — agora nas redes sociais.

No âmbito da política internacional contemporânea, a Rússia oferece resistência eficiente ao Ocidente?

Nós não podemos subestimar o exército russo. O país do leste europeu tem um exército extremamente poderoso, com armas nucleares. E além disso, atualmente a Rússia tem duas armas que talvez sejam mais poderosas do que as armas tradicionais: o gás natural e o petróleo. Isso porque ela é um país com muitos recursos naturais, assim ela usa a dependência do Ocidente desses recursos como arma de guerra. Chamo a atenção para aquela ocasião na qual o Kremlin ordenou a interrupção do fornecimento de gás natural para a Alemanha, país extremamente dependente do gás russo.

Rússia comunistas
100 Mitos da Revolução Russa | Imagem: Regiane Bertini/Linotipo Digital/Divulgação

Na eventualidade de um terceiro conflito armado de proporções mundiais, Putin deve exercer papel de destaque? O Kremlin tem, de fato, infraestrutura tecnológica para ameaçar o mundo?

Eu percebo que sim, porque a Rússia tem outros países como aliados, como a China. Atualmente, a China é um país neutro, mas só pela questão comercial. Mas se a guerra ficar séria, eu creio que ela vá para o lado da Rússia — contra o Ocidente. O exército russo é o maior do mundo, e ele pode contar com outros exércitos. Nós não sabemos, por exemplo, para o lado de quem a Índia vai. Mas é certo que a Rússia, pelos seus recursos e poder bélico, pode ameaçar o mundo.

Como se dá a relação entre Moscou e Pequim? A aliança entre ambas as potências comunistas vai muito além da aproximação ideológica?

Além da questão ideológica há a questão comercial. Quando a Rússia travou as indústrias alemãs, as empresas da Alemanha começaram a se mudar para a China. E o país asiático tem grande interesse em ver a Rússia prejudicar a Europa Ocidental. Isso porque quanto mais fraca ficar a Europa e os Estados Unidos, mais empresas fugirão para a China, fortalecendo a economia do país asiático. Então há grandes interesses militares e ideológicos entre ambos os países; e deve haver também acordos secretos.

Quando alguém conquista o poder, é natural que busque legitimar o poder conquistado. A intenção de Putin é criar uma imagem da Rússia tradicional, predestinada à grandeza; trazendo também elementos religiosos. A verdade é que Vladimir Putin é um oportunista que só quer permanecer no comando do país. Ele usa os chavões culturais com o único propósito de conquistar o coração do povo russo. Dugin ajuda o presidente do país a cristalizar a imagem do passado de ouro da nação; mostrar a Rússia como uma nação forte e com um futuro glorioso pela frente. E eu acho que, no Brasil, o discurso de Dugin não encontra simpatizantes nem da esquerda nem da direita, diferente de Olavo de Carvalho.

A eleição de Lula representa uma aproximação, ainda que tímida, entre Brasília e Moscou?

Eu creio que sim. Nós percebemos que o Lula nunca escondeu, até mesmo durante as eleições, nos debates, sua atração por ditadores. Lula chegou a chamar de “preconceituosos” aqueles que se negavam a reconhecer o governo do ditador Nicolás Maduro, da Venezuela. Ele é bastante simpático com regimes totalitários na Ásia e na África. Recentemente o petista esteve no Egito, um país que não é propriamente uma democracia. Lula claramente não está do lado dos países progressistas, industrializados. Quando um presidente visita outro país, seu objetivo tem de ser buscar investimentos. Mas o Lula não: suas viagens são a passeio e, quando muito, para fazer conexões políticas com os seus parceiros ideológicos.

Você já esteve na Rússia? Como é a vida no país?

Eu já visitei a Rússia. Um comportamento peculiar que notei lá é que as pessoas têm bastante medo da polícia. Um exemplo do controle do Estado sobre a vida privada é que é necessário ter uma espécie de passaporte para mudar de cidade. As pessoas têm de preencher um relatório na polícia indicando o motivo da mudança de cidade, se têm emprego e moradia no destino e outras questões semelhantes. Certa vez, eu estava no hall de um hotel, me preparando para subir de elevador. Havia dois policiais no elevador: ninguém à minha volta quis subir com eles, só eu. Mas os russos são, no geral, simpáticos; eles são bastante conectados com a religião ortodoxa (eu me converti à fé ortodoxa).

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Fonte : Revista Oeste

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