Arte, cidadania e inclusão social

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“Retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”. Esse é o significado do Sankofa, um símbolo ideográfico (Adinkra) dos povos Akan — da África Ocidental, atual Gana e Costa do Marfim. Representado pela imagem de um pássaro com a cabeça voltada à sua própria cauda, o Sankofa expressa a importância da recuperação da ancestralidade por meio da valorização da memória e do reconhecimento histórico. É movido por esse e outros saberes das tradições africana e indígena que, há 19 anos, o artista plástico Elioenai Gomes desenvolve ações de inclusão social e exercício da cidadania com a população do Centro Histórico de João Pessoa por meio do Ateliê Multicultural Elioenai Gomes.

 O Centro Histórico tem sido alvo de uma série de projetos de recuperação e resgate, unindo Câmara Municipal, Prefeitura, Governo do Estado e até órgãos internacionais. Na semana passada, o prefeito Cícero Lucena esteve em Paris para assinar acordo de investimentos com um agência francesa para garantir recursos.

Certificado, em 2020, como Ponto de Cultura, o Ateliê — e o próprio Nai Gomes, como é conhecido pelos amigos — vivem, hoje, um momento novo e repleto de desafios. Após 15 anos de atividades ininterruptas na Ladeira da Borborema, o ateliê está em processo de instalação em uma nova sede. Mais precisamente em um sobrado azulejado na Rua da Areia que, assim como diversos outros imóveis da região, encontrava-se completamente degradado.

Segundo Nai, a mudança não foi exatamente planejada, mas provocada pela dificuldade de arcar com as despesas da antiga sede. “Era uma casa alugada e um terreno vizinho que eu também aluguei. Mas chegou um momento em que não havia mais condições de manter os dois imóveis porque o aluguel aqui no Centro Histórico é muito alto”, explicou.

A solução veio em 2018, por meio de um contrato de comodato com um antigo cliente que possuía imóveis na região. “Ele mostrou várias casas até que chegamos em frente dessa que eu já tinha parado várias vezes desejando”, relembra o artista. Contudo, apesar da conquista do espaço, o estado precário do imóvel somado à situação de quase abandono do local fizeram com que a ocupação fosse postergada e se transformasse em uma quase odisseia que perdura até hoje.

“É um casarão de 176 anos que teve um incêndio em 1982 e, de lá para cá, não teve mais moradia porque ruiu tudo. O último negócio que funcionou aqui foi uma marcenaria. Mas acabou com o incêndio. Para eu estar aqui, foi preciso tirar 52 caçambas de entulho”, comentou.

De acordo com Nai, o projeto de restauração aprovado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep) prevê a construção de três pavimentos que abrigarão: a sede da Maracá Cidadania — organização não governamental que representa o ateliê —, um museu afroindígena, um espaço de residência artística e uma galeria de artes. Todavia, no momento, o projeto encontra-se em fase de “reforma simplificada”, e as atividades do ponto de cultura têm sido realizadas em meio à reforma e sob estruturas de lona, pois toda a estrutura do telhado foi destruída no incêndio e até hoje não foi possível recuperar.

Legado

Considerado uma referência cultural da capital paraibana e de todo o estado, o Ateliê Multicultural integra diferentes formas de expressões artísticas, como  música, artes visuais, artes cênicas e literatura. Entre os produtos e arranjos criativos consolidados no ateliê, destacam-se o grupo Raízes de percussão e dança afroindígena, o Coral Orikis, a escola de atabaques Ilú Odara e projetos como o Baile Afro, Cortejo de Tambores, Baile de Máscaras, Auto dos Orixás, festejos ciganos e o Acolhimento Afetivo a estudantes, professores, idosos e grupos em situação de vulnerabilidade social da região.

Neste sentido, Elioenai observa que a restauração do casarão, assim como todo o movimento de fortalecimento do Centro Histórico, tem sido um processo também de restauração pessoal que ele espera que sirva de inspiração para outras pessoas.

Valor
Secretário estadual de Cultura, Pedro Santos, ressalta a “incalculável riqueza arquitetônica, histórica e imaterial” do Centro Histórico de João Pessoa

“Quando eu tive que sair da Ladeira da Borborema, eu me destruí, saí partido, indignado. Vim parar em um canto que sofreu um incêndio, um canto degradado. Então, cada processo aqui que vai sendo restaurado, eu também estou sendo reformado e restaurado. Eu amo esse centro. Eu nasci em Cruz das Armas, e toda a minha formação escolar e estudantil foi aqui no centro. A minha intenção é realmente deixar um legado. É ocupar com o povo negro um espaço que foi construído pelo povo negro. Porque, aqui, não é uma casa minha. É uma casa que, legitimamente, deve ser entregue para o povo”, afirmou.

Embora veja com otimismo os recentes investimentos e ações do Poder Público na região do Centro Histórico por meio do Viva o Centro — projeto promovido em conjunto pelo Governo do Estado e Prefeitura de João Pessoa com apoio do Governo Federal, da Assembleia Legislativa da Paraíba (ALPB) e da Câmara de João Pessoa (CMJP) —, o artista plástico faz questão de pontuar: “É preciso reconhecer que não é só um Centro Histórico comercial. Há moradores aqui que precisam de condições dignas de um bairro, com segurança, iluminação, calçadas decentes, tudo que tem direito”.

“Mais do que atrair empreendedores, as gestões precisam entender quem são os verdadeiros fazedores de cultura e os moradores que já vivem nesse lugar. É uma ação do governo, mas os protagonistas somos nós, as casas e espaços de cultura, as organizações da sociedade civil e tudo que, durante todo esse tempo, funciona nesse Centro Histórico mesmo sem a visibilidade necessária. Eu, inclusive, convido as gestões a conhecer essa minha luta e esse meu esforço para manter essa casa e essa história do Ateliê Multicultural”, acrescentou o artista.

Incentivo

O secretário estadual de Cultura, Pedro Santos, ressalta que, para além da “incalculável riqueza arquitetônica, histórica e imaterial”, a região “é o início da ideia de cidade” que os paraibanos têm hoje.

Ele cita obras realizadas e em andamento, como construções do Museu da Polícia Militar e do Museu do Palácio da Redenção e as reformas da Biblioteca Augusto dos Anjos e do Theatro Santa Roza. 

“Há ainda a previsão da construção do Centro de Referência do Hip Hop Paraibano. Tudo isso dentro do perímetro do Centro Histórico. E, nesse contexto, o Programa ICMS Patrimônio Histórico é mais uma dessas iniciativas. É um investimento de R$ 10 milhões em isenção fiscal para colaborar com reformas de imóveis que vão provocar uma maior circulação de pessoas nessa região”.

Prefeitura analisa intervenções para atender população da área

Em relação à questão da população que vive no centro da cidade, o secretário municipal de Planejamento da Prefeitura de João Pessoa, Ayrton Falcão, ressaltou que, desde que a atual gestão começou a analisar as possíveis intervenções a serem feitas na região, “uma das primeiras medidas foi buscar soluções para a questão habitacional”.

Segundo ele, já nos próximos meses devem ser iniciadas as obras do conjunto habitacional que será instalado na área da antiga concessionária Proserv, no Varadouro. A expectativa é que sejam construídos 120 apartamentos pela prefeitura com recursos do Governo Federal por meio do programa Minha Casa, Minha Vida. De acordo com o secretário, parte das residências servirão “para começar a reposicionar algumas famílias mal instaladas no Porto do Capim”.

Aliás, para o Porto do Capim, Falcão lembra que está previsto um investimento de cerca de R$ 100 milhões por meio do Novo PAC Seleções, dentro da modalidade “Periferia Viva — Urbanização de Favelas”.

“Nós abandonamos a ideia das gestões anteriores de retirar todos os moradores e instalar praças, e vamos tentar fazer um ‘mix’. Assim, teremos uma requalificação urbana da área com diversas melhorias habitacionais aliadas a uma recolocação com novos prédios que serão reposicionados naquela região. Além de espaços turísticos, ainda teremos ali o Galpão Nassau, que será totalmente recuperado e também servirá de habitação”, explicou.

Na lista de iniciativas voltadas para habitação, o secretário também incluiu a requalificação do prédio do antigo Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado (Ipase), na esquina das ruas Duque de Caixas com Guedes Pereira, e do Edifício As Nações Unidas, na Praça Vidal de Negreiros. De acordo com ele, somados os dois projetos, devem ser ofertados cerca de 100 apartamentos à população do Centro da capital.

É uma honra poder estar contribuindo com esse processo. É um trabalho muitas vezes lento, porque requer muita burocracia, muitos procedimentos e cuidados, existem muitas instituições envolvidas e muitos agentes fiscalizadores que precisam ser consultados. É um resgate que tem que ser feito aos poucos, não acontece do dia para noite. Mas imaginar a possibilidade de poder ver nos próximos meses e nos próximos anos a recuperação do Centro Histórico é muito emocionante”, pontuou.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 28 de julho de 2024.

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A União

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