“O compliance ainda é visto pelas empresas como um sistema para inglês ver”, diz ex-ministro da AGU

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Ex-ministro-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU) do governo Temer, o jurista Fábio Medina Osório tem se dedicado a um tema de maior interesse para as empresas e para a sociedade: os modelos de compliance, aquele conjunto de normas e procedimentos éticos e de integridade das empresas.

Para Medina, doutor na Universidade Complutense de Madri e mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o compliance deve superar a rigidez formalista e os desvios de finalidade que muitas vezes comprometem a efetividade dos sistemas de integridade das empresas.

“O compliance ainda é visto pelas empresas como uma barreira burocrática e apenas um sistema que serve para inglês ver”, diz o jurista ao NeoFeed. Ele está na fase final de um novo livro sobre o tema a ser lançado no segundo semestre deste ano, depois de escrever Teoria da Improbidade Administrativa, hoje na sexta edição.

Medina defende que o compliance tenha impacto nas ações de órgãos controladores. “Hoje ele serve apenas para uma atenuante que tem pouco impacto na responsabilidade da empresa. Então, o compliance é desvalorizado pelo próprio órgão regulador”, explica.

Para ele, o compliance officer deveria ter assento no conselho de administração para dividir responsabilidades e estar adequado à realidade das empresas. Leia os principais trechos da entrevista:

O modelo de compliance hoje no Brasil está defasado?
O compliance emerge como um modelo global de defesa das empresas, principalmente a partir da década de 1970. Primeiro nos Estados Unidos e depois se espalha como um sistema basicamente defensivo, normativista na raiz de escândalos empresariais nos Estados Unidos. Com a promoção da Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), que é a legislação anticorrupção americana, o compliance surge com uma necessidade pragmática das empresas para atender exigências de autorregulação e de respostas frente ao atendente, ao fenômeno de combate à corrupção dentro das empresas, e a exigência que começa a se universalizar do combate à corrupção, que até então não era uma necessidade tão pragmática no mundo contemporâneo. E isso mais tarde vai se acelerando cada vez mais numa agenda global.

Mas há um processo de evolução?
É um instrumento para se reciclar continuamente. O compliance é basicamente um instrumento que significa a necessidade de a empresa estar em conformidade com as leis, com a Constituição de cada país, e também com legislações extraterritoriais, às quais a empresa no mundo global está submetida. Nessa evolução, o compliance passa por múltiplos estágios.

Ex-ministro-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU) do governo Temer, o jurista Fábio Medina Osório
O ex-ministro-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU) do governo Temer, o jurista Fábio Medina Osório

Qual é o estágio atual?
Desde 2020, é denominado compliance 4.0. É o compliance das corporações globais. Aquelas que atendem a essas exigências inerentes a um compliance integrado com inteligência artificial, com tecnologia, uma normatização bastante rígida, integrada, com normas internacionais, com as exigências de órgãos reguladores dentro do país onde a empresa opera e também com reguladores internacionais, porque a companhia também fica submetida a legislações extraterritoriais.

E qual é o problema?
O diagnóstico é que o modelo atual de compliance tem se revelado muito burocrático ainda. Primeiro, porque o compliance não tem atuado como a verdadeira visão institucional da empresa, a geração de lucro, de integração com a visão do CEO, da visão da cúpula da empresa e tampouco com a visão de defesa dos autênticos interesses institucionais da empresa. Então, o compliance ainda é visto pelas empresas como uma barreira burocrática e apenas um sistema que serve para inglês ver.

Algo mais raso?
Diria que é vitamina para alimentar as empresas de auditoria do compliance ou simplesmente prestar contas de forma burocrática por órgãos reguladores. O compliance deveria ser visto de outra forma, até pelo chefe do compliance. Quem é o chefe? É o compliance officer. E aí está a primeira grande mudança de paradigma que deveria existir nas empresas. O compliance officer deveria não apenas se reportar ao conselho de administração, não deveria ser um apêndice, não deveria ser apenas um diretor da empresa. Ele deveria estar integrado na empresa com um mandato dentro do conselho de administração. Isso sim deveria ser uma norma internacional para as companhias de capital aberto. É, digamos assim, um pilar daquilo que eu denomino como compliance transformativo.

“O compliance não pode ser uma barreira para a empresa. Se o compliance for uma barreira para a empresa, a empresa vai desconfiar do compliance e contornar essa barreira”

Por quê?
Porque essa figura do autêntico compliance tem de estar alinhada com os interesses institucionais da empresa. Eu entendo que a reputação, como um ativo estratégico, deveria estar hoje no coração da empresa. A reputação é a verdadeira vulnerabilidade da empresa, mesmo nos gigantes empresariais. Na medida em que essa reputação é efetivamente um ativo estratégico e se eles têm essa vulnerabilidade, eles podem ser atacados em questão de segundos e podem desabar em questão de segundos.

Como se proteger?
Com um modelo de compliance transformativo, que leve em conta os interesses autênticos da empresa, que ela defenda seus valores.

Mas isso já não existe?
Em primeiro lugar, o que as empresas fazem é basicamente uma codificação padronizada de compliance a partir de uma indústria que praticamente tomou conta desse método no mundo contemporâneo e fabrica esses códigos mais ou menos padronizados para as empresas. Então são muito parecidos.

É preciso um compliance customizado?
Um compliance mais adaptado a empresas, à realidade de cada empresa. E um compliance officer alinhado à política verdadeira da empresa, com assento no conselho de administração, alinhado com o CEO.

O que precisa mudar, então?
Já analisei e baixei vários modelos de compliance, você não vê um compliance officer dentro dos conselhos de administração das empresas. É uma grande mudança de paradigma. O ganho para a empresa é atuar alinhado à identidade e aos valores da empresa. O compliance não pode ser uma barreira para a empresa. Se o compliance for uma barreira para a empresa, a empresa vai desconfiar do compliance e contornar essa barreira. Se o compliance for responsável pelos atos que ele tomar dentro do conselho de administração, ele passa a ter responsabilidade pelos atos que ele toma. O compliance officer passa a ter uma função decisiva nas empresas. Hoje ele é um jogador de defesa, muitas vezes sem formação jurídica.

E esse modelo está defasado?
Sim. As empresas percebem esse modelo como burocrático. Basta você olhar nos sites das empresas como se apresentam esses códigos cada vez mais abstratos, cada vez mais burocráticos e no nível de responsabilidade das empresas, o compliance conta cada vez menos. Basta você ver a quantificação da atenuante do compliance na lei anticorrupção empresarial brasileira. É mínima. Ela não serve sequer para excluir a responsabilidade das empresas. Quando você olha, por exemplo, qual é o peso do compliance no âmbito da CGU? Ele serviria para excluir uma responsabilidade da empresa? Deveria servir, mas não serve. Então, está tudo errado. O compliance é desvalorizado pelo próprio órgão regulador, que no caso é a CGU. Então, a empresa investe pesado no compliance para ter pouco impacto de retorno.

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Neofeed

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