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O blues é uma instituição para os EUA como o samba é para o Brasil. São gêneros de música extremamente populares e tiveram seu auge no século 20. Às vezes, o cinema de narrativa ficcional norte-americano costuma abraçar o blues, mais, até, do que o cinema brasileiro acolhe o samba (a não ser pelos documentários). E na terra de Robert Johnson, vez ou outra aparece um bom título embalado pela “música do diabo”, como diriam os fanáticos religiosos do início do século passado.
Há cinebiografias, como A Voz Suprema do Blues (com Viola Davis no papel de Ma Rainey, pioneira do gênero) e Cadillac Records (sobre a Chess Records, que alçou à fama gente como Muddy Waters), e comédias super divertidas, como Os Irmãos Cara-de-Pau, de John Landis, com Dan Aykroyd e James Belushi afiadíssimos.
A Encruzilhada (inspirado em Robert Johnson, com o guitarrista Steve Vai fazendo o papel do capeta), e o intenso Entre o Céu e o Inferno, em que Samuel L. Jackson passa o filme tentando tirar o diabo no corpo de Christina Ricci, também estão entre meus favoritos nessa estante.
Pecadores, há mais de um mês em cartaz nos cinemas, é o novo título a integrar esse rol, em uma posição alta, inclusive. Dirigido com competência e sensibilidade por Ryan Coogler (também autor do roteiro) e estrelado por Michael B. Jordan — juntos, fizeram Pantera Negra, Creed – Nascido Para Lutar e Fruitvale Station – A Última Parada — Sinners (no original) mistura blues, gangsters e vampiros para abordar diferenças religiosas, sociais e raciais.
Michael B. Jordan interpreta dois irmãos gêmeos, Fumaça e Fuligem, que voltaram de Chicago para o interior profundo da América: o Delta do Mississipi. É o início dos anos 1930, o racismo assombra a sociedade negra com as vestes brancas da Klu Klux Klan e a lei seca limita a diversão de toda comunidade. As juke joints, botecos instalados longe da lei, são os “templos” em que as dores e a luta contra o racismo e a hipocrisia são extravasados com muita música, dança e bebida.
Com o apurado ilegal que juntaram trabalhando para Al Capone, os gêmeos compram uma antiga serralharia para transformá-la nesse boteco-de-beira-de-estrada, e logo estarão recrutando um pequeno exército para fazer o lugar fervilhar de música e comida.
O primeiro a embarcar é Preacher Boy (o novato Miles Caton), o primo bluesman que é filho de um pastor, de quem herdou um violão de aço que pertenceu ao lendário Charley Patton (criador do chamado “blues do Delta”). Depois vem o veterano gaitista Delta Slim (Delroy Lindo) — e vale dizer que tanto Lindo, quanto Caton estão ótimos, além de B. Jordan, competentíssimo ao emprestar personalidades distintas a cada um dos gêmeos.
Dentro os personagens, ainda destaco a esotérica Annie (Wunmi Mosaku), que chegou a ter uma filha com Fumaça, mas ela faleceu ainda bebê, além de um casal de comerciantes asiáticos, um catador de algodão e por aí vai.
Toda primeira parte do filme converge para a inauguração desse bar. E na noite de estreia, tudo vai muito bem até que bate à porta um vampiro branco, disposto a se banquetear com a festa. E um a um, o tal Remmick (Jack O’Connell) vai afiando os dentes caninos tanto dos frequentadores, quanto dos amigos de Fuligem e Fumaça.
Ryan Coogler fez bem o trabalho de pesquisa, mergulhando no blues para criar uma fábula de horror moderna e eletrizante. Tem um ótimo jogo de câmera, que atinge o ponto alto num plano sequência em que Preacher Boy sobe ao palco e começa tocar seu mágico violão de aço no palco, criando uma catarse onírica em que músicas e imagens, de ontem e de hoje, se misturam, do blues raiz ao hip-hop, passando pelo soul e gospel.
Aliás, o blues no filme é colocado quase como uma religião própria, cuja música vai duelar com a “seita” dos vampiros e sua música folk irlandesa e branca. É uma associação intrigante, costurada por Coogler e pelo sueco Ludwig Göransson, um apaixonado por blues que havia colaborado com o diretor em Pantera Negra, filme que lhe deu seu primeiro Oscar por trilha sonora (o outro foi Oppenheimer). Aqui, ele vai na cartilha do blues para ir de gospel a rock pesado, com artistas lendários e contemporâneos, criando uma tapeçaria única e brilhante.
Respondendo por apenas uma parte de um filme que mistura drama, ação e musical, os vampiros são reprocessados a partir de toda lenda construída, sobretudo, a partir do cinema: alho, estaca e, principalmente, a ideia de que o vampiro não pode entrar em um recinto sem ser convidado são muito bem servidos a uma das histórias mais empolgantes dos últimos tempos, que conclui com a participação especial de uma grande lenda do blues. E que venha o Oscar para Pecadores!
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 20 de maio de 2025.
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A União