Free flow vira o “bode na sala” no processo de modernização de rodovias

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O ciclo de modernização que o segmento de concessões de rodovias vem passando nos últimos anos, embalado por investimentos privados e a adoção de tecnologia de ponta para monitorar o tráfego e a segurança do entorno, não foi suficiente para consolidar o último avanço introduzido nas estradas do País: o free flow, sistema de pedágio eletrônico.

A funcionalidade, que seria um trunfo do novo modelo – que funciona sem cabines de atendimento ou cancelas para pagamento -, virou argumento para deputados, prefeitos e o Ministério Público se organizarem em ações em múltiplas frentes para tentar suspender a cobrança de multas por tarifas não pagas ou simplesmente reverter a adoção do free flow nas estradas.

O principal argumento é o de que a população não está sendo “informada adequadamente” nos locais onde os pórticos começaram a ser instalados, o que é rebatido pelas concessionárias. Em duas concessões que adotaram o free flow entre 2023 e 2024 e apostaram em campanhas informativas, a inadimplência do pagamento de tarifa caiu de uma média de 7% para 4%.

O free flow funciona como uma espécie de “cabine virtual de pedágio” no formato de um pórtico instalado na rodovia, pelo qual o motorista passa sem precisar reduzir a velocidade. Um sistema eletrônico de alta tecnologia – que inclui scanners 3D, radares, câmeras, leitores de placa e dados processados por inteligência artificial – identifica as características do veículo, registrando automaticamente o valor a ser pago.

Quem não possui a tag instalado no para-brisa – dispositivo eletrônico que permite o pagamento automático de pedágios sem precisar parar na cabine – precisa baixar um aplicativo e pagar o pedágio em até 30 dias após passar pelo pórtico. Quem não pagar é multado em R$ 195,23 e leva cinco pontos na CNH por evasão de pedágio.

Essa necessidade de usar um app para efetuar o pagamento da tarifa está no centro da atual polêmica, apesar de o free flow existir há dois anos e, onde está sendo instalado, as concessionárias adotarem ampla campanha de informação de como utilizar o modelo.

No Congresso Nacional, por exemplo, o projeto de lei 3.262/2024, de autoria do deputado federal Hugo Leal (PSD-RJ), propõe que, no período em que o modelo está em teste, as multas por pagamento fora do prazo deveriam ser retiradas dos motoristas.

Leal usa como base de seu projeto de lei a inadimplência no primeiro pedágio desse modelo implantado, na BR-101/RJ, em 2023, da Motiva, concessão da CCR RioSP. De acordo com o deputado, mais de 1,2 milhão de multas foram emitidas a motoristas que não pagaram o pedágio no prazo.

O anúncio de que outra estrada sob concessão da CCR, a Via Dutra, iria instalar dos pórticos de free flow este ano na pista expressa da Dutra, entre os quilômetros 205 (Arujá) e 230 (São Paulo), levou o Ministério Público Federal a propor o adiamento por cinco anos da cobrança de multas do free flow.

De acordo com procurador da República Guilherme Rocha Göpfert, sem essa ampliação do prazo, haverá uma situação “catastrófica”, com aumento exponencial de multas lavradas e de pessoas perdendo o direito de dirigir.

Em outra frente, a instalação de 13 pórticos anunciada pelo governo estadual de São Paulo na chamada Rota Sorocabana – um corredor de 12 rodovias estaduais que passam por 17 municípios e se estende por 450 km no interior paulista – levou no mês passado a uma autêntica revolta de prefeitos e políticos da região, que obrigou o governador Tarcísio de Freitas a recuar, reduzindo o número de pórticos previstos para nove.

Exageros

Consultados pelo NeoFeed, especialistas em infraestrutura rodoviária e concessionárias que estão adotando o free flow alinham argumentos que apontam alguns exageros na reação ao novo modelo e reforçam a necessidade de ampla comunicação de como funciona o pedágio eletrônico para evitar o alto grau de inadimplência.

A polêmica, na verdade, ameaça o grande projeto por trás da adoção do modelo – a eliminação do dinheiro físico envolvendo pedágio na rodovia e, por tabela, as cabines de pedágio, espécie de consolidação da modernização das rodovias, tema que foi abordado por George Santoro, secretário-executivo do Ministério dos Transportes, em artigo recente para o NeoFeed.

Desde março de 2023, com a instalação dos primeiros pórticos que registram a passagem dos carros em três trechos da BR-101 (Rio-Santos), entre Paraty e Angra dos Reis, sob concessão da CCR, o free flow passou a ser utilizado em outras rodovias.

No ano passado, substituiu as cabines de pedágio em três rodovias estaduais do Rio Grande do Sul (operadas pela concessionária CSG), e foi adotado em outras duas rodovias paulistas: na SP-333, em Itápolis e Jaboticabal, como parte da Rota Sorocabana; e no Contorno Sul da Rodovia dos Tamoios, recém-aberto no Litoral Norte.

Fernando Gallacci, sócio de infraestrutura do escritório Souza Okawa Advogados, observa que já foram testados pedágios free flow em rodovias existentes no Rio Grande do Sul e na BR 101/RJ, com resultados debatidos em agências reguladoras e audiências públicas, tudo precedido de ampla campanha de comunicação para os usuários, com informações sobre métodos de pagamento e mudança de sinalização de trânsito.

“Logo, parece difícil dizer que a preocupação de comunicação aos usuários não está na agenda de free flow”, afirma Gallacci. Ele atribui a resistência atual em algumas localidades ao fato de o modelo estar sendo introduzido em rodovias desenhadas originalmente para adotar pedágio com cabines.

“O desafio de trazer o free flow cresce nas rodovias existentes, pois essas detêm desenho ‘aberto’, no qual os motoristas entram e saem da rodovia em diferentes alças ou marginais”, diz, numa referência à polêmica na Rota Sorocabana – onde prefeitos de cidades com pórticos próximos à entrada do município pressionaram o governo estadual.

Gallacci afirma, porém, que alguns projetos novos, como o Rodoanel Norte de São Paulo ou o Rodoanel de Belo Horizonte, já preveem todo layout das rodovias para o funcionamento de pedágios free flow. “Essas rodovias teriam um desenho mais ‘fechado’, que favorece a implantação desse sistema.”

Paulo Miguel Júnior, vice-presidente da ABLA (Associação Brasileira das Locadoras de Automóveis), aborda um aspecto muito citado por políticos e pelo MP: a obrigatoriedade do uso de tag eletrônica por parte dos motoristas que utilizam free flow para controle de passagem.

Segundo ele, essa exigência impõe um custo mensal adicional ao usuário, o que não deveria ser obrigatório. “Para o usuário convencional, é mais simples e econômico utilizar uma cancela, parar e efetuar o pagamento, do que assumir uma mensalidade por uma tag que a pessoa vai usar eventualmente”, diz o vice-presidente da ABLA.

Esse argumento, porém, é colocado em dúvida pelo rápido avanço da adoção de tags. Em média, cerca de 85% das transações de pedágio no Brasil já são realizadas através de tags eletrônicas.

Miguel Junior observa ainda que o sistema também parece desconsiderar as particularidades de frotistas. Só as locadoras de veículos têm mais de 1,6 milhão de automóveis no Brasil. “No momento da devolução, caso o cliente não informe por onde circulou, a locadora não tem condições de acessar manualmente os diversos sistemas de diferentes concessionárias para consultar as passagens de cada placa.”

Uma novidade que está sendo desenvolvida pelo Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) deve evitar o prejuízo das locadoras e, ao mesmo tempo, reduzir a inadimplência: a solução prevê que toda passagem em sistema free flow seja comunicada ao proprietário do veículo — seja por meio eletrônico, seja por e-mail — permitindo que ele seja informado em tempo hábil e possa efetuar o pagamento da tarifa correspondente.

Propostas debatidas

As concessionárias e autoridades, por sua vez, rebatem os argumentos que levaram à recente polêmica.

Por meio de nota, a assessoria de imprensa da Secretaria de Parcerias em Investimentos (SPI) – órgão do governo estadual paulista encarregado de implementar o free flow na Rota Sorocabana – afirma que a SPI realizou duas audiências públicas e uma consulta pública entre março e abril de 2024, quando apresentou o modelo de concessão, e recebeu mais de 450 contribuições, das quais 288 foram da sociedade civil.

“As propostas foram debatidas com prefeitos, vereadores e representantes da população das cidades impactadas”, diz a nota. Quanto à redução de 13 para 9 no número de pórticos, a SPI afirma que a readequação foi feita “após diálogo e revisão com o colhimento das sugestões locais, sem comprometer a sustentabilidade do contrato”.

A Ecovias Noroeste Paulista, concessionária das estradas da Rota Sorocabana e pioneira do free flow em rodovias paulistas, afirma por meio de nota que, desde o início da operação, tem realizado um trabalho contínuo e abrangente de comunicação com os motoristas da região e também de longa distância, com o objetivo de informar e orientar sobre essa nova forma de cobrança.

De acordo com a Ecovias, esse trabalho de preparação e comunicação tem se mostrado eficiente.

“Desde o início da operação até março de 2025, o sistema passou por um processo de amadurecimento contínuo, que resultou em uma redução significativa na taxa de inadimplência, no início de 7,7% e que atualmente está em 4,4% — um número positivo, considerando o curto prazo de implantação e a mudança de comportamento exigida dos usuários”, informa a concessionária.

Levantamento da CSG – que opera seis pórticos localizados em três rodovias estaduais no Vale do Caí e na Serra Gaúcha – mostraram redução de 7,5% para 4,1% de motoristas não pagantes em seis meses. Mais de 60% dos clientes realizam o pagamento por tag.

Já a CCR RioSP, também por meio de nota, esclarece que a concessão da BR-101/RJ e da BR– 116 Via Dutra fazem parte de um mesmo contrato de concessão.

“Desde 2023, quando o sistema de pedágio eletrônico entrou em funcionamento na BR-101/RJ temos investido continuamente em ações de comunicação para garantir que todos os motoristas sejam informados sobre o funcionamento do sistema e as formas de pagamento”, afirma a CCR RioSP.

Atualmente, prossegue a nota, a rodovia conta com mais de 100 placas regulamentadas sobre o pedágio eletrônico; 70 faixas informativas com orientações claras sobre os pórticos e canais de pagamento; distribuição de novas 70 placas refletivas, ampliando ainda mais a sinalização em ambos os sentidos da rodovia, além de cinco bases operacionais da CCR RioSP com atendimento ao público.

Além disso, a concessionária realiza ativações presenciais em feriados e pontos estratégicos, com distribuição de materiais explicativos e orientação direta a mais de 15 mil motoristas.

“Sobre as discussões em curso no Congresso Nacional e no Ministério Público Federal e sobre a aplicação de multas durante o período de implantação do sistema, a Motiva Rodovias informa que atua com restrição conforme as diretrizes definidas pela ANTT, a quem cabe a regulamentação e supervisão do modelo”, acrescenta a nota.

Ivana Cota, do escritório Ciari Moreira Advogados, afirma que a polêmica atual revela que uma inovação sem adesão social e informação clara pode gerar resistência, mesmo diante de benefícios objetivos.

“A principal lição desta polêmica do free flow é que inovações em serviços públicos devem ser acompanhadas de comunicação robusta, escuta ativa da população e transição gradual, sob pena de inviabilizar avanços técnicos por ausência de legitimidade social”, diz Cota.

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Neofeed

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