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De fonte que abastecia a recém-fundada Cidade Real de Nossa Senhora das Neves, a cujas águas eram atribuídas propriedades curativas, a palco de feminicídio e, finalmente, muro de uma residência. A Bica dos Milagres, em João Pessoa, abriga memórias do passado tão esquecidas quanto o seu local. Quem passa pela Rua Augusto Simões, nº 59 (antiga Rua dos Milagres), na descida da Ladeira de São Francisco, no Centro Histórico da capital paraibana, mal consegue identificar que o lugar foi um importante marco do processo de urbanização local.
“Ela estava entre as fontes de água potável que garantiram a sobrevivência humana nos primeiros séculos da cidade. Lembrando que o saneamento, incluindo água encanada, da então Parahyba — hoje, João Pessoa — só foi inaugurado nas primeiras décadas do século 20. Até então, quem fornecia água potável eram as bicas, entre elas, a dos Milagres, a do Tambiá, entre outras”, informa o jornalista e escritor Sérgio Botelho.
Nas bicas e cacimbas, a população da pequena cidade se abastecia do precioso líquido, transportando-o em potes ou barris sobre o lombo de burros e jumentos. O controle quanto à quantidade de água para cada morador já era realizado no ano de 1599, pouco mais de 10 anos depois da fundação da cidade, segundo revelou o médico e historiador Guilherme Gomes D’Ávila Lins, a partir de relatos de um antigo manuscrito chamado Sumário das Armadas, no qual se narram as guerras durante a conquista do Rio Paraíba.
A fonte só ganharia o título “dos Milagres”, dado também ao beco onde ela se situava, com os relatos de que suas águas teriam o poder de fazer os viajantes alcançarem, milagrosamente, a cura de seus males. A mais conhecida dessas narrativas, segundo D’Ávila Lins, foi a cura do conde e príncipe holandês, Maurício de Nassau. “Ele sofria de cálculo renal, uma nefrolitíase, e veio à Paraíba, em 1638, por recomendação dos próprios comparsas deles para se tratar da doença. Sabia-se em toda a região Nordeste do valor quase milagroso das águas daquela bica. Então, Nassau bebeu da água e teria expelido as pedras. Por isso, a Bica dos Milagres”, contou o médico e historiador.
Os adornos de chafariz só foram dados no período imperial, quando, por ordem do vice-presidente da província em exercício, Manuel Lôbo de Miranda Henriques, contrataram-se os serviços para sua construção, concluídos dois anos depois. “A partir de 1849, o povo se abastecia do precioso líquido que jorrava das duas torneiras de bronze, ladeadas por colunas de pedra, cujos capitéis, ligados entre si ao alto, eram rematados por uma cornija, em semicírculo. À semelhança das fontes portuguesas, de onde lhe proveio o estilo, tinha encimada entre as cornijas, no centro, a coroa com as armas imperiais em relevo, e a data de 1849”, descreveu o cineasta e pesquisador Walfredo Rodriguez, no livro Roteiro Sentimental de uma Cidade.
Em 1962, quando escreveu a sua obra, Rodriguez já lastimava o descuido com o espaço histórico, que não contava mais com o brasão de armas do império, arrancado “segundo dizem, a mandado da diretoria do Colégio das Neves, sob pretexto fútil, talvez por se julgar proprietária daquele monumento”. O cineasta e pesquisador chegou a apelar para a restauração do patrimônio onde, na infância, costumava se lavar, pois “seu grande ‘tanque’ era conhecido como um dos pontos de banho da cidade”. Sua voz, no entanto, não encontrou eco nos responsáveis da época: “Sobram-nos razões para lamentar como se acha descaracterizado um dos poucos marcos que ainda nos restam do passado histórico da cidade”.
Sérgio Botelho, por sua vez, acredita que o abandono do monumento tem relação com a superação de sua utilidade, já que com a implantação do saneamento e a encanação da água potável, o local deixou de ser referência para a população. Ainda assim, não deixa de mencionar a responsabilidade do Poder Público e das elites na preservação da memória da cidade. “Hoje, é parte da parede de uma casa, cuja percepção é até difícil, porque está irreconhecível enquanto fonte que ofertou vida à cidade em sua idade mais tenra”, declarou o escritor.
Palco de feminicídio
Em 1801, a Bica dos Milagres teria sido palco de um crime que abalou a pacata sociedade da época e envolveu o frade franciscano José de Jesus Maria Lopes e sua amante, a mestiça Tereza. Sérgio Botelho acredita que foi no local onde o religioso fixou os olhos de desejos na moça, enquanto ela apanhava água. Os assédios continuariam até conseguir possuí-la. As visitas do frade à casa de Tereza, a partir de então, tornariam-se frequentes, mas, um dia, encontrou-a nos braços de outro.
“Sem pestanejar, investiu contra o homem, que era ágil e forte, um capoeirista, e, em pouco tempo, deu uma pisa no padre. Dias depois, o frade fingindo ter perdoado Tereza, a convidou para uma reconciliação na mesma fonte, onde a havia visto pela primeira vez. O encontro seria à meia-noite, quando o local estaria deserto, longe dos olhos curiosos. Tereza aceitou o convite. Na noite marcada, foi até o local, levando consigo a sua filha, uma menina de apenas sete anos”, escreveu Botelho.
Com a ajuda de um escravizado e um indígena, o franciscano José de Jesus Maria Lopes agarrou a amante e a golpeou até a morte, assassinando-a por empalamanto.
“Quando o corpo de Tereza foi encontrado, o horror tomou conta da então cidade de Parahyba. A criança, ainda em choque, contou às autoridades tudo o que viu. Não demorou muito para que o frade fosse preso e levado a julgamento. Sua sentença foi a prisão perpétua, a ser cumprida em uma cela de um convento, na Bahia. O escravizado morreu na cadeia e o indígena foi devolvido a seu aldeamento”, detalhou Sérgio Botelho.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 11 de maio de 2025.
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A União