Estereótipo e feminicídio

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Dias antes da Lei do Feminicídio no Brasil completar 10 anos, a sociedade brasileira acorda com mais um caso que passa a figurar massivamente nas mídias tradicionais e redes sociais.

O crescente aumento das estatísticas de feminicídio no país dá a dimensão da gravidade num primeiro momento, mas pode essa mesma estatística produzir uma naturalização se esses dados não vierem acompanhados de ações mais estratégicas do poder público, da sociedade, dos meios de comunicação e de tantas instituições igualmente responsáveis por agir, para que nenhuma menina ou mulher seja morta pelo fato de ter nascido mulher.

A experiência do feminicídio no país para nós, mulheres, é um trauma. E acredito que em outras sociedades também. Há muitos casos de feminicídio no Brasil que não chegam às páginas de jornais, aos programas de rádio e televisão, ou às plataformas digitais. Há também a subnotificação nos casos de violência contra mulheres no cotidiano.

Persiste ainda nas experiências de cobertura de casos de feminicídio enquadramentos muito desafiadores, especialmente quando alguns acontecimentos intensificam-se na agenda midiática, ampliando a visibilidade do problema, porém, evidenciando muitas dificuldades para superação, como é a persistente narrativa estereotipada.

Recentemente o feminicídio da adolescente Vitória Regina, de 17 anos, assassinada ao retornar para casa, em Cajamar, depois de um dia de trabalho, reforça a necessidade do amplo debate e de ações urgentes em várias frentes da sociedade. O tratamento dado ao trágico acontecimento traz ainda dor a família e a nós mulheres.

É muito comum ouvirmos durante a cobertura a expressão “motivação para o crime”. Claro que isso é uma maneira de classificar os crimes dentro de uma prática ritual de investigação criminal. No entanto, o que para mim seria igualmente relevante é que, em se tratando de um caso de feminicídio, saísse do horizonte de qualquer cobertura midiática ou tratamento que tivesse algum resquício de culpabilização da vítima.

Claro que compreendo que nem toda pessoa que verbaliza isto tem no horizonte justificar um feminicídio. Entretanto, há um problema estrutural nessa linguagem. É uma questão de hermenêutica — profunda de interpretação —, e disputa de sentidos num processo complexo de enquadramento quando narramos o feminicídio.

A definição de feminicídio, presente na Lei no 13.104/15 é um crime por razões de condição de sexo feminino. O feminicídio é o ápice, é o extermínio, dentro de um processo cultural imenso e bastante enraizado em nossas sociedades, com base no histórico de uma educação patriarcal e misógina, que persiste ainda hoje. E se amplia mediante uma comunicação multiplataforma pelo crescimento do ódio virtual contra as mulheres.

Entre 2021 e 2022, segundo a Agência Brasil, houve um aumento de 251% dos casos de misoginia e opressão contra as mulheres na internet, oriundos em grande parte de grupos extremistas.

Por isto que é relevante alertar os meios de comunicação social, jornalistas, gestores públicos, para eliminação de estereótipos de gênero. A projeção de imagens negativas e degradantes das mulheres é uma experiência que ancora o sujeito feminino como alvo de violências. E implica num grande prejuízo para a participação das mulheres na vida social.

Se num primeiro instante um caso de feminicídio causa comoção em cadeia nacional, é urgente que haja efetivamente um horizonte de ação contínua de integração da perspectiva de gênero em programas e políticas públicas. Não apenas no mês alusivo às comemorações do Dia Internacional da Mulher.

Infelizmente, há um esquema grande e persistente de cognição, interpretação, apresentação estereotipada em relação ao feminicídio e outras formas de violação contra as mulheres, que enfatiza o sensacionalismo, nutre narrativas distorcidas e propícia a monetização. Excluindo a possibilidade de uma crítica às formas de opressão feminina que se mantêm no social, seja pela educação, crenças religiosas, indústria cultural, comunicação e entretenimento.

Um feminicídio não é uma tragédia individualizada; é o reflexo de como, no social, os sujeitos feminino e masculino são construídos e posicionados. Não dá para despolitizar.

 *Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 14 de março de 2025.

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A União

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