O dinheiro inventou a filosofia? Uma ideia surpreendente acredita que sim

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O livro Trabalho Intelectual e Manual, do filósofo alemão Alfred Sohn-Rethel (1899-1990), apresenta uma ideia surpreendente: o pensamento abstrato, base da filosofia, da matemática e da ciência, surgiu do dinheiro. Foi a moeda, usada na compra e venda de mercadorias, que “ensinou” a racionalidade a fazer abstrações — e com isso elaborar depois conceitos e teorias.

A obra parte do pressuposto de que as capacidades racionais não são inatas nem qualidades originárias do espírito humano, mas foram desenvolvidas através da história por meio da experiência e da prática. Por isso, para o ser humano aprender a abstrair, foi necessário que algum tipo de abstração já existisse na realidade, de forma concreta, para ser percebida e absorvida pelo pensamento. Isso pode parecer um contrassenso: algo que fosse abstrato e material ao mesmo tempo. Pois bem, essa coisa misteriosa, simultaneamente material e abstrata, é o dinheiro.

Uma nota de dez reais, por exemplo, é um objeto de papel, com diversos símbolos e expressões. Ela pode estar desgastada ou amassada, mesmo cortada e colada com fita adesiva, mas continua valendo a mesma coisa. O material do dinheiro é palpável, sofre desgaste, pode se degradar. Mas o valor é abstrato, fixo e imutável. Isso é assim desde que o dinheiro foi criado: um objeto físico que carrega a abstração do valor.

O valor contido no dinheiro é a primeira abstração na história que se tornou perceptível para a humanidade e serviu de modelo para o pensamento, segundo Sohn-Rethel. É uma abstração que surgiu fora do pensamento, na ação de troca de mercadorias, já em seus primórdios.

Isso acontece na prática: quando duas coisas diferentes são trocadas (por exemplo, peixes por porcos), todas as diferenças reais entre as mercadorias são deixadas momentaneamente de lado e é considerado apenas aquilo que as torna iguais e permite que uma tome o lugar da outra: o valor.

Esse valor, abstrato, não foi definido aleatoriamente pelo pensamento, mas pelo mercado, que determina a proporção da troca (quanto peixes por quantos porcos). É uma abstração criada pela sociedade.

A evolução histórica, com etapas intermediárias, leva a uma situação em que a proporção de troca entre as mais diferentes mercadorias deixa de ser feita caso a caso e passa a ser definida em relação a uma única mercadoria “intermediária”: o dinheiro. A moeda passa a ser a medida geral do valor, servindo como instrumento para todas as trocas.

É nesse momento, na Grécia antiga, que a abstração se torna perceptível, palpável, e a humanidade pode então observá-la e incorporá-la como pensamento.

“Os gregos dos séculos VII e V a.C., na Jônia, em alguns estados marítimos gregos e no sul da Itália, onde o dinheiro surgiu, observaram essa rara instituição humana, tão obscura e estranha, em suas nuances mais sutis. Ainda mais que parece provável que Pitágoras, em Taranto, e Parmênides, em Eléia, foram eles mesmos responsáveis pela emissão de moedas”, escreve Sohn-Rethel.

O dinheiro “encarna” a abstração do valor, antes invisível, que foi criada socialmente na prática do mercado, e torna essa abstração perceptível. É partir dessa fonte real, mostra o filósofo, que surge a abstração intelectual, nas formas de filosofia, matemática e ciência da natureza.

Isso esclarece por que a filosofia e a matemática teórica surgiram na Grécia, de forma “repentina”, por volta do século VI a.C. Foi uma mudança tão profunda no pensamento humano, e tão difícil de explicar, que por muito tempo esse surgimento foi chamado de “milagre grego”.

Sohn-Rethel observa, no entanto, que no mesmo momento, também na Grécia, foram cunhadas as primeiras moedas para serem usadas na compra e venda de mercadorias, o que seria a chave para compreender essa transformação. “Historicamente os puros conceitos filosóficos ganharam forma pela via do dinheiro”, afirma o autor, pondo de lado a hipótese do inexplicável “milagre grego”.

Para Sohn-Rethel, o valor contido no dinheiro é a primeira abstração na história que se tornou perceptível para a humanidade e serviu de modelo para o pensamento (foto: Divulgação/Boitempo)

Com 280 páginas, o livro “Trabalho intelectual e manual,” custa R$ 83,00 (Foto: Divulgação/Boitempo)

Parmênides, um dos primeiros filósofos (e provavelmente também um dos primeiros responsáveis pela cunhagem de moedas na Grécia), por exemplo, criou o conceito abstrato de “ser” como uma substância única que constitui tudo o que existe. Essa substância seria sempre a mesma, independente da aparência e das qualidades físicas das coisas.

Sohn-Rethel observa que esse conceito corresponde precisamente às características do valor abstrato nas mercadorias. Diversos outros conceitos, desde a filosofia antiga até a física no Renascimento, são apresentados em sua relação com o dinheiro e sua abstração.

A hipótese de que a matemática abstrata tenha se originado no Egito e não na Grécia (tese conhecida como “orientalismo”) também é descartada. O famoso papiro egípcio de Rhind, muito anterior aos gregos, contém, de fato, cálculos matemáticos.

Porém, são técnicas aplicadas a problemas reais, com uso de cordas para realizar medidas e demarcações, principalmente de construção e agrimensura. Não têm a generalidade de um espaço teórico com linhas, figuras e volumes ideais. Ou seja, falta a abstração que, para o autor, provocou na Grécia uma mudança tão radical na arte da medida que fez surgir a matemática no sentido em que a conhecemos.

Toda a demonstração da origem do pensamento abstrato no dinheiro faz parte da discussão, mais ampla, da separação entre trabalho manual e intelectual (que dá título ao livro) no funcionamento do capitalismo.

Sohn-Rethel utiliza conceitos marxistas, ao lado de análises antropológicas sobre a troca em sociedades primitivas, feitas por Marcel Mauss e Claude Lévi-Strauss, além de fartas referências históricas e filosóficas. É uma obra de investigação e análise, como insiste o autor, totalmente diversa de um “ensaio teórico ideológico”.

Sohn-Rethel trabalhou nesses temas por mais de cinquenta anos. Houve várias versões do texto, que foi sendo aprimorado ao longo do tempo. A publicação brasileira, recém-lançada, é da última versão da obra, de 1989.

É uma leitura que exige uma certa dedicação, mas que abre horizontes de reflexão tanto sobre a História, como sobre a situação atual de profunda transformação produtiva e tecnológica da sociedade.

*Elvis Cesar Bonassa, doutor em Filosofia pela USP, é jornalista, ganhador do Prêmio Jabuti de livro de reportagem (em coautoria), e especialista em análise e planejamento de políticas públicas. Traduziu o livro “Trabalho intelectual e manual”, de Alfred Sohn-Rethel.

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