Brasil elimina transmissão da filariose linfática como problema de saúde pública

 

O Brasil recebeu da Organização Mundial da Saúde (OMS) a certificação pela eliminação da transmissão da filariose linfática como problema de saúde pública, um marco significativo na luta contra doenças tropicais negligenciadas (DTN). Esse resultado é fruto de décadas de esforços integrados entre governos, pesquisadores e comunidades, consolidando o País como uma referência no enfrentamento da doença, também conhecida como elefantíase.

“Essa vitória não é resultado de uma ação isolada, mas sim de um compromisso coletivo iniciado há mais de 25 anos, envolvendo medidas rigorosas de diagnóstico, tratamento e vigilância epidemiológica. Isso demonstra que o planejamento estratégico aliado a políticas públicas bem executadas faz toda a diferença”, afirma o Dr. Gilberto Fontes, parasitologista da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ) e um dos principais especialistas brasileiros em filariose linfática.

Doença negligenciada e seus impactos

A filariose linfática é causada pelo Wuchereria bancrofti, um verme transmitido por mosquitos como o Culex quinquefasciatus. Após a infecção, o parasito se desenvolve e se aloja nos vasos linfáticos, causando inflamação crônica que pode evoluir para deformidades graves, como a elefantíase – uma condição debilitante que impacta profundamente a autoestima e a qualidade de vida das pessoas. “A filariose é uma doença que afeta as populações mais vulneráveis, aquelas sem acesso a saneamento básico e serviços de saúde. Apesar de não ser fatal, ela impõe um enorme peso emocional e social sobre os indivíduos acometidos e suas famílias”, destaca o Dr. Fontes.

Embora o Brasil tenha eliminado a transmissão da doença, isso não significa a erradicação global da doença, como enfatiza o parasitologista. “Erradicar significa que não há mais casos em qualquer lugar do mundo. Esse não é o caso da filariose linfática, que permanece endêmica em diversos países da África e da Ásia, afetando cerca de 100 milhões de pessoas, especialmente na Índia e em países africanos. No Brasil, eliminamos a transmissão, mas ainda precisamos lidar com pacientes crônicos que requerem acompanhamento médico e social”, explica. Esses pacientes, embora não sejam mais transmissores, continuam a sofrer com sequelas, como a elefantíase. “É fundamental garantir suporte contínuo para essas pessoas, porque a eliminação da transmissão não resolve o impacto físico e emocional que elas carregam”, reforça o especialista.

Caminho até a certificação

O reconhecimento pela OMS coroa um trabalho iniciado em 1997 com o Programa Nacional de Eliminação da Filariose Linfática, que implementou uma série de ações estratégicas. Entre elas, destacou-se o tratamento em massa com a administração de dietilcarbamazina (DEC) em áreas endêmicas, com foco especial na Região Metropolitana do Recife, onde está localizado o Serviço de Referência Nacional em Filarioses do Instituto Aggeu Magalhães (IAM), último reduto ativo da doença no Brasil. Paralelamente, foram realizadas campanhas de educação em saúde para conscientizar a população sobre os riscos da filariose e as medidas preventivas necessárias. Em algumas áreas, também ocorreram melhorias no saneamento básico, visando reduzir a exposição aos mosquitos transmissores, além de um monitoramento epidemiológico rigoroso, essencial para identificar e tratar possíveis novos casos. Os primeiros levantamentos nacionais sobre a filariose ocorreram entre 1950 e 1958, identificando 11 focos de transmissão no País. As cidades mais afetadas incluíam Belém e Recife. Com o tempo, o foco principal e remanescente concentrou-se na Região Metropolitana do Recife, onde foi realizado o tratamento em massa. “Entre 2003 e 2016, foi realizado o tratamento em massa no Recife, Olinda e Jaboatão dos Guararapes, alcançando milhares de pessoas. Desde 2017, não registramos novos casos. Esse resultado só foi possível graças à colaboração entre o Ministério da Saúde, estados, municípios, instituições de pesquisa e a academia”, afirma o Dr. Fontes.

Desafios persistentes

Apesar dos avanços, o Brasil ainda enfrenta desafios significativos para manter a certificação de eliminação da filariose linfática como problema de saúde pública. Entre as principais medidas necessárias está a manutenção de um sistema de vigilância epidemiológica robusto, capaz de monitorar áreas anteriormente endêmicas, realizar busca ativa de casos suspeitos e garantir o treinamento contínuo de profissionais de saúde. A questão migratória também exige atenção especial, particularmente devido ao fluxo de migrantes provenientes de áreas endêmicas, como Haiti, Ásia e África, que podem representar um risco de reintrodução da doença no Brasil. Essas populações vulneráveis precisam ser integradas em ações de vigilância e cuidado, garantindo que a eliminação da transmissão seja mantida a longo prazo.

“Com o aumento dos fluxos migratórios, como os do Haiti após o terremoto de 2010, precisamos reforçar a vigilância nas áreas de entrada do País. O laboratório de Referência Nacional em Filarioses e os Laboratórios Centrais (LACENs) estão preparados para identificar qualquer caso suspeito, mas esse é um trabalho que precisa ser contínuo”, atenta o Dr. Fontes.

Reconhecimento e legado

O Brasil agora compartilha sua experiência com outros países das Américas, como Guiana, Haiti e República Dominicana, que ainda enfrentam desafios na eliminação da filariose linfática. “Participamos de encontros organizados pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), onde compartilhamos nossas estratégias. Nossa trajetória serve de inspiração para outros países em situações semelhantes”, diz o Dr. Fontes. A certificação da OMS não é apenas uma conquista técnica, mas também um marco na saúde pública brasileira. “Essa vitória reforça a importância de políticas integradas, pesquisa científica e investimento contínuo em saúde. É uma mensagem clara de que, mesmo em cenários desafiadores, é possível alcançar resultados extraordinários”, conclui.

A eliminação da filariose linfática como problema de saúde pública posiciona o Brasil como uma referência global no enfrentamento de doenças tropicais negligenciadas, evidenciando o impacto transformador de um sistema de saúde que prioriza o cuidado universal e a prevenção. Com a certificação, o Brasil passa a integrar um seleto grupo de 20 países e territórios que alcançaram essa conquista. Entre eles estão Malawi, Togo, Egito, Iêmen, Bangladesh, Maldivas, Sri Lanka, Tailândia, Camboja, Ilhas Cook, Quiribati, Laos, Ilhas Marshall, Niue, Palau, Tonga, Vanuatu, Vietnã e Wallis e Futuna. Nas Américas, entretanto, três países ainda enfrentam o desafio de eliminar a doença: República Dominicana, Guiana e Haiti. Para essas regiões, a OMS recomenda a administração em massa de medicamentos como estratégia principal para interromper a transmissão da filariose linfática.

A meta global estabelecida pela OMS é eliminar pelo menos 20 DTN até 2030, incluindo a filariose linfática, reafirmando o compromisso internacional com a saúde pública e a redução das desigualdades sanitárias. O Brasil tem desempenhado um papel de liderança no cumprimento dessas metas, não apenas em relação à filariose linfática, mas também no enfrentamento de outras doenças como tracoma, oncocercose e geohelmintoses. O País já está próximo de alcançar a eliminação de várias dessas condições, impulsionado pelos esforços conjuntos entre o Ministério da Saúde, instituições públicas de saúde e centros de pesquisa, que continuam a gerar resultados positivos e fortalecer a saúde pública nacional.

 

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Fonte:

Sociedade Brasileira de Medicina Tropical

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