Pesquisadora da UFSC estuda histórico do aborto em caso de estupro no direito brasileiro

Pesquisa usou fontes jornalísticas, doutrinárias, normativas e parlamentares para analisar os tensionamentos existentes em relação ao aborto legal. Foto: reprodução Revista Cruzeiro, 1975, edição 15. Fonte: Hemeroteca Digital

O histórico da criminalização do aborto no Brasil, a inclusão da possibilidade de aborto em caso de gravidez decorrente de estupro no Código Penal e as disputas existentes em torno do tema ao longo dos anos são alguns dos assuntos que a pesquisadora Bárbara Madruga da Cunha discute em sua tese de doutorado. Realizada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) sob orientação do professor Diego Nunes, a pesquisa combina fontes doutrinárias, jornalísticas, normativas e parlamentares para analisar os tensionamentos existentes entre as interpretações tradicionais dadas ao aborto legal na legislação brasileira e aquelas reivindicadas pelo movimento feminista a partir do processo constituinte.

O foco da tese está nos sentidos atribuídos à hipótese legal de aborto em caso de gravidez decorrente de estupro prevista no Código Penal de 1940 desde a elaboração dessa legislação até a publicação da norma técnica do Ministério da Saúde que regulamenta o serviço de aborto legal no SUS, em 1998. O trabalho, contudo, traz um histórico de como o tema vem sendo tratado no ordenamento jurídico brasileiro desde o início do século XX, bem como aborda a participação de diversos atores sociais nos debates sobre o assunto.

Formada em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Bárbara trabalha com a temática do aborto desde sua graduação. Durante o mestrado, que também foi cursado na UFSC, estudou a criminalização do autoaborto no período que vai de 1890 a 1940 – somente no Código Penal de 1890 que o autoaborto passou a ser previsto como um crime. Até então, apenas o aborto provocado por terceiro era criminalizado, de modo que a conduta da mulher que interrompesse a gravidez em seu próprio corpo não era punida.

“Eu cheguei na questão da história do aborto em caso de gravidez decorrente de estupro por um desdobramento da minha pesquisa de mestrado. Porque na pesquisa de mestrado eu percebi que o aborto em caso de risco à saúde materna já era previsto antes do Código de 40, do nosso atual Código Penal. Geralmente as pessoas atribuem ao nosso Código Penal essas duas excludentes [de ilicitude], tanto do aborto em caso de gravidez decorrente de estupro quanto de aborto em caso de risco à vida materna”, comenta Bárbara.

A excludente de ilicitude, a que ela se refere, pode ser resumida como uma exceção à proibição legal, que, na prática, afasta a punição de uma conduta que seria considerada crime, em razão das circunstâncias em que ela foi praticada. No caso, o aborto é configurado como um crime pelo Código Penal, mas o artigo 128 determina que não se pune o aborto praticado por médico se não há outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro. Outro exemplo de excludente de ilicitude é a legítima defesa.

“Antes do nosso código penal atual já se entendia que o aborto não só nos casos de risco à vida materna, mas de risco à saúde da mãe de uma forma mais ampla, era um exercício regular de direito. Então as mulheres podiam provocar o aborto nesses casos”, explica a pesquisadora. O aborto necessário, como era chamado quando havia risco à saúde da mulher, foi debatido e reconhecido como um excludente de ilicitude pela doutrina na vigência do Código Penal de 1890, e o Decreto 20.931 de 1932 era explícito ao permitir o aborto em caso de “necessidade terapêutica”. O Código de 1940, portanto, restringiu essa hipótese.

“E, ao mesmo o tempo, não encontrei nada sobre aborto em caso de estupro. Isso me deixou muito curiosa. Outra coisa que me deixava muito intrigada em relação a essa temática é que nosso Código Penal foi elaborado em um período super autoritário, que era a ditadura Vargas. Assim como todos os códigos penais que a gente teve no Brasil, ele não foi votado, foi imposto, não passou pelo congresso, porque o congresso estava fechado, e foi feito por homens. Um dos homens, que é tido como um dos principais, é Nelson Hungria, que é um cara extremamente misógino. Tinha alguma coisa que não estava encaixando. Foi aí que eu resolvi investigar isso na tese e que cheguei nesse objeto de pesquisa”, relata Bárbara.

Sua ideia inicial era trabalhar com autos criminais, alvarás judiciais e prontuários médicos do Sul do Brasil tramitados entre 1940 e 1988, ano de promulgação da Constituição Federal. O objetivo era verificar se o fato de a gravidez ser decorrente de estupro era utilizado como argumento de defesa pelas acusadas, se era comum a solicitação de alvará judicial para realização do procedimento, quais os protocolos utilizados pelos hospitais e como eles registravam a prática. A proposta inicial, entretanto, mostrou-se inviável. 

Bárbara não conseguiu acesso a esses documentos no Paraná e em Santa Catarina – os arquivos históricos não compreendiam o período que ela tinha interesse em pesquisar, e só era possível ter acesso aos materiais sabendo informações como o número do processo ou nome das pessoas envolvidas. No Rio Grande do Sul, sim, ela pôde ter acesso à documentação, mas não encontrou nenhum processo relacionado ao aborto legal. Foi então que decidiu ampliar sua análise para os jornais da época, buscando menções a processos judiciais e analisando as abordagens do tema.

“Aí se abriu uma grande porta, porque a gente tem a Hemeroteca Digital, que tem um grande acervo digitalizado, ainda que muito focado nos jornais de grande circulação da época, com muitos jornais do Sudeste, e alguns do Nordeste, dependendo da época. Mas já se consegue fazer uma pesquisa muito mais sistematizada, pesquisar por termos, etc. Então, pelos jornais, eu consegui ter acesso a informações sobre os processos.” Foi assim que ela descobriu, por exemplo, que o primeiro registro de processo judicial solicitando autorização legal para o aborto em caso de estupro foi feito somente em 1979, no Paraná. 

Primeira Guerra Mundial e início dos debates

Médica Evarista de Sá Peixoto foi uma das poucas mulheres a se manifestar sobre o aborto em caso de estupro nos jornais no contexto da Primeira Guerra Mundial. Foto: reprodução jornal A Notícia (RJ), 1915, edição 118. Fonte: Hemeroteca Digital

O estudo constata que o debate sobre o aborto em casos de estupro ganhou repercussão no contexto da Primeira Guerra Mundial, em razão dos inúmeros casos de mulheres violentadas por soldados estrangeiros no período. No Brasil, opiniões médicas sobre o assunto ocuparam matérias de jornal e artigos de revistas especializadas – em um debate conduzido quase que totalmente por homens. 

De modo geral, os médicos que se opunham ao aborto baseavam suas posições na ideia de que o amor materno se desenvolveria instintivamente na mulher, nos benefícios da reprodução para a defesa militar e o progresso econômico da nação e na inocência do feto. Já aqueles que apoiavam a interrupção da gravidez falavam do sofrimento e da desonra moral das mulheres e de suas famílias e utilizavam justificativas eugênicas, como a necessidade de evitar o nascimento de seres indesejáveis, diante da ideia de que o agressor sexual seria portador de anomalias e traços genéticos negativos.

Os únicos argumentos que destoavam eram os da médica Evarista de Sá Peixoto e da jurista Myrthes de Campos, considerada a primeira advogada brasileira. “Essas mulheres trazem uma perspectiva diferenciada para esse debate”, afirma Bárbara. Em suas manifestações públicas sobre o tema, elas enfatizaram que a criminalização do aborto em caso de estupro afrontava a liberdade e a dignidade e suprimia direitos individuais das mulheres.

“São debates muito interessantes, porque a gente percebe também a importância da inserção das mulheres nas profissões. Ali a Myrthes era uma, né, sozinha ali no meio. Mas à medida que essas mulheres, na segunda metade do século 20, vão tendo cada vez mais formação acadêmica e se inserindo nessas profissões, elas vão olhando para essas questões de uma outra forma”, destaca a pesquisadora.

Código Penal de 1940 e a excludente de ilicitude

A pesquisa demonstra que o aborto em caso de gravidez decorrente de estupro passou a ser previsto no Código Penal de 1940 sem que houvesse grande mobilização social ou um debate mais amplo, em um contexto de autoritarismo político. O projeto que deu origem ao código, escrito por Alcântara Machado, previa que nem gestante nem médico seriam punidos em caso de interrupção da gravidez fruto de violência sexual. O artigo que descriminalizava a mulher, contudo, foi retirado da versão final, sem que fossem registrados os motivos que levaram à alteração.

O trabalho revela ainda que a doutrina jurídica, de modo geral, compreendia o aborto em caso de estupro enquanto uma excludente de ilicitude voltada ao médico, de modo que as mulheres estariam condicionadas à vontade e à consciência do médico. Ao demonstrar que os juristas continuavam a associar a violência sexual à proteção da honra e não reconheciam o crime de estupro dentro das relações conjugais, sustenta também que a previsão legal do aborto buscava originalmente proteger as famílias legítimas, resguardando o direito sexual do homem sobre sua esposa. 

Movimentos feministas e aborto como direito

Aborto começa a ser amplamente debatido nos veículos jornalísticos brasileiros a partir da década de 1970, com a ascensão dos movimentos feministas no cenário global. Foto: reprodução Revista Manchete, 1973, edição 1089. Fonte: Hemeroteca Digital

Segundo a pesquisadora, a norma só passou a ser amplamente reivindicada enquanto um direito social pelo movimento feminista a partir dos anos 1980, no contexto da redemocratização. A força dos movimentos feministas no cenário global levou o tema a ser discutido também no Brasil, com reportagens abordando os casos de aborto permitidos em lei e os problemas de saúde resultantes da criminalização. 

“Nesse aspecto, a imprensa teve um importante papel não só em divulgar o debate como em provocar uma interpretação popular do art. 128, II, do Código Penal. Ao simplificar a linguagem jurídica, os jornais e revistas afirmavam que o aborto só era permitido no Brasil em dois casos: quando a gestação fosse fruto de estupro e a gravidez gerasse risco de vida à mulher. Não se falava em excludente de ilicitude ou ausência de punibilidade, mas sim em ‘aborto legal’”, informa a tese.

A visibilidade do tema, além de possivelmente levar ao aumento da demanda pelo serviço de aborto, provocou reações conservadoras, sobretudo em uma conjuntura internacional de mobilizações pró-vida, promovidas pelas igrejas católica e evangélica. É nessa época também que começam a aparecer as demandas judiciais pela realização do aborto em caso de estupro. Todos os casos encontrados na imprensa eram relativos a mulheres que buscavam atendimento gratuito na rede de saúde. Nenhuma notícia fazia referência a médicos particulares que tenham feito a exigência de autorização judicial. “Inclusive alguns jornais falavam que era mais fácil conseguir um aborto numa clínica clandestina do que em um hospital público”, comenta Bárbara.

A criação de iniciativas governamentais que reconhecessem o aborto legal como um direito da mulher e um dever do Estado só foi possível por meio dos direitos consagrados na Constituição Federal de 1988. Apesar de o movimento feminista não ter conseguido pautar a questão do aborto na constituinte, devido ao caráter predominantemente conservador do Congresso Nacional, a pesquisa destaca que a maior conquista do movimento foi assegurar o direito à igualdade plena entre homens e mulheres, reconhecendo-as como sujeitos de direito autônomos. 

A previsão do acesso universal e do atendimento integral aos serviços públicos de saúde, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), também foi fundamental. “Nessa perspectiva da igualdade jurídica e do movimento sanitarista de acesso universal à saúde, o aborto, sim, seria um direito, é quase uma consequência lógica dessa interpretação constitucional”, afirma Bárbara.

Em 1989 foi criado o primeiro serviço público hospitalar para atender a demanda do aborto legal, em São Paulo. Em 1997, o Conselho Nacional de Saúde emitiu a Resolução 258, que enfatizava a necessidade de o Ministério da Saúde desempenhar seu papel na definição das diretrizes para o atendimento do aborto legal no âmbito do SUS. Também destacava que, 57 anos depois do Código Penal de 1940, somente oito hospitais atendiam casos de aborto por estupro e que essa lacuna era uma ofensa à dignidade das mulheres e colocava em risco sua integridade. A primeira regulamentação administrativa sobre o aborto em caso de estupro se deu em 1998, com a publicação da norma técnica do Ministério da Saúde para Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes.

Jornais e revistas brasileiros chamavam a atenção para o fato de, muitas vezes, ser mais fácil conseguir um aborto em clínica clandestina do que em hospital público, mesmo nas hipóteses previstas pela legislação. Foto: reprodução Revista Manchete, 1976, edição 1257. Fonte: Hemeroteca Digital

Disputas e tensionamentos atuais

A interpretação do artigo 128 do Código Penal continua sendo disputada. Dados de 2019, mostravam que apenas 3,6% dos municípios ofertavam o serviço de aborto legal. Nos últimos anos, ganharam repercussão diversos casos de meninas e mulheres que tiveram o direito ao aborto legal negado por serviços de saúde e pelo judiciário. Em 2024, a tramitação de pelo menos dois projetos mobilizaram a população nas ruas e nas redes sociais em todo o país: o Projeto de Lei 1904, que equipara o aborto ao crime de homicídio, e a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 164, que propõe a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção, aprovada em novembro na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados. 

Segundo a pesquisadora, a ausência de uma legislação que regulamente e obrigue o atendimento ao aborto legal pelo SUS torna esses serviços dependentes da vontade política de governos e de instituições de saúde, e, consequentemente, sujeitos à instabilidade. Mesmo que a norma técnica do Ministério da Saúde seja bastante precisa, ela não tem a mesma força normativa que uma lei editada pelo Congresso Nacional. Isso permite que magistrados, promotores, agentes públicos e unidades de saúde se utilizem de interpretações mais restritivas do Código Penal para negar o acesso ao aborto legal. “É uma grande barreira que a gente tem até hoje, porque isso acaba caindo na discricionariedade do juiz”, afirma Bárbara.

Ela aponta que, no cenário global, com o fortalecimento do fundamentalismo religioso e as novas estratégias políticas adotadas pelo Vaticano, o avanço progressivo no reconhecimento dos direitos das mulheres foi significativamente desacelerado na década de 1990. “Quando fiz a minha pesquisa de mestrado, que foi sobre a Primeira República, a religião não estava no debate entre os juristas, não estava no debate nos processos.”

“Os eclesiásticos e até os juristas que trabalhavam com o direito eclesiástico tinham diferentes abordagens sobre esse tema. Por exemplo, Santo Agostinho, que é um jurista e filósofo, dizia que a alma só entrava no corpo dos meninos a partir de 90 dias e, nas meninas, a partir de 120 dias – não lembro o porquê da diferença, mas tinha uma diferença –, e que até aquele momento eram só projetos de vida. Inclusive se ensinava nesses manuais religiosos, às mulheres que eram violentadas, a se lavarem, a fazerem uma lavagem uterina para tirar o esperma. No debate da Primeira Guerra Mundial tem isso, aparecem os médicos falando que os clérigos já ensinavam métodos contraceptivos, mas que, na nossa visão atual, são considerados métodos abortivos. Então é realmente a partir dos anos 1980 que o cristianismo se posiciona politicamente contra o aborto de uma forma feroz, realmente uma campanha política”, conta a pesquisadora.



Legislação para regulamentação do aborto legal

O estudo defende a criação de uma lei que obrigue a prestação de serviços de aborto legal no SUS. Destaca, ainda, a necessidade de se reconhecer legalmente direitos que atendam às demandas das pessoas que gestam “por meio de regras claras, explícitas e mandatórias, de modo que a sua interpretação (e, consequentemente, sua aplicabilidade) não esteja submetida à conjuntura socioeconômica ou à vontade política de agentes públicos ou governantes”.

A regulamentação por meio de norma técnica, apesar de importante, deixa brechas para a violação de direitos. Não existe nenhuma sanção para o descumprimento da norma. “E também, quando se vai entrar com o processo judicial, o que os juízes conservadores geralmente fazem, eles dizem: ‘o Código Penal está acima da norma técnica do Ministério da Saúde, porque o Código Penal é uma legislação, e a norma técnica não é uma lei no sentido estrito. Ela é uma lei que a gente chama de sentido amplo. Então se o Código Penal estabelece como uma excludente, eu não posso autorizar o médico porque cabe ao médico escolher se ele quer praticar ou não’”, explica Bárbara.

“Por isso que eu defendo que exista uma lei de regulamentação desse direito, que consolide essa interpretação. A gente não precisa de uma lei que reconheça esse direito, mas a gente precisa de uma lei que o regulamente, que diga, por exemplo, que todos os hospitais com capacidade de X leitos devem ter obrigatoriamente atendimento a mulheres em situação de violência, inclusive o serviço do aborto. Uma política que seja legal, porque o que a gente já teve são políticas públicas no sentido administrativo, são políticas governamentais, não leis que sejam perenes no tempo”, complementa a pesquisadora.

Tese

A tese de doutorado Perspectivas sobre o aborto legal em caso de gravidez decorrente de estupro na história do direito penal brasileiro (1940-1998): interpretações jurídicas e estratégias de resistência feminina está disponível no Repositório da UFSC.

 

Camila Raposo | [email protected]
Agência de Comunicação | UFSC

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