A arte imagina a vida

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“Destino de jabuti, para falar a verdade, esse de Antônio (…). A casa, que não possui, carrega sobre a cabeça um imenso favo ovalado”. O trecho é um excerto do novo romance do escritor, ator e diretor Paulo Vieira de Melo, O Rasga Rua (2024), escrito em Paris, em 1994 – e só publicado recentemente pela editora A União —, mas inspirado em uma figura popular de João Pessoa, o morador de rua Antônio Rasga Rua, também conhecido como “Velho do Saco”, falecido em 17 de agosto deste ano. O livro será lançado hoje, às 18h, no Centro Cultural São Francisco, compondo a programação de lançamentos do Festival Literário Internacional da Paraíba (FliParaíba) — veja a programação de hoje no quadro.

Distante de uma obra biográfica, O Rasga Rua mergulha o leitor em universo ficcional para explorar uma história que se confunde com a própria história da cidade de João Pessoa. Em torno de Antônio, o autor constrói uma narrativa que, embora ficcional, dialoga com as memórias coletivas e as contradições sociais da capital paraibana.

“Esse Rasga Rua é resultado de um projeto antigo que tenho, de pelo menos 15 anos, de escrever sobre a cidade de João Pessoa e, por extensão, sobre a Paraíba de modo geral”, explica Vieira, 68 anos, que, além de escritor, também é reconhecido por seus trabalhos como dramaturgo.

A obra integra um projeto do autor de preencher lacunas na literatura paraibana a respeito das personalidades do cotidiano local. Segundo Vieira, a Bahia, por exemplo, possui um imaginário ricamente explorado por seus artistas, enquanto a Paraíba, ainda carece de narrativas literárias que valorizem suas histórias locais, por mais que já tenha melhorado bastante.

“Escrevi três romances que compõem uma trilogia histórica da Paraíba. Meu interesse sempre foi construir histórias para as cidades e seus personagens”, detalha.

 Da lenda à ficção

Rasga Rua é uma figura marcante que habitou as ruas de João Pessoa por décadas. Apesar de ser amplamente conhecido, a vida do personagem é pouco documentada, o que abriu espaço para a ficção. “Antônio foi um dos homens mais conhecidos da Paraíba durante seu tempo. Ele caminhava por toda a cidade, e a ausência dele nas ruas, nos últimos anos de vida, chegou a ser notada e noticiada pela imprensa”, comenta.

O livro é uma história de amor. Antônio é apaixonado por uma jovem, e essa paixão permeia toda a narrativa. “Porém, toda a trajetória que criei para ele é completamente inventada. Não há uma gota de verdade nessa construção ficcional”, esclarece Paulo.

Antônio, um homem branco de cabelos loiros e cacheados, foi cercado de mitos durante seu tempo de mendicância nas ruas, como uma versão popular de que ele era rico e havia perdido tudo em razão de uma traição amorosa. “No livro, apresento uma versão em que ele nunca se deitou com uma mulher, mas isso é apenas uma das tantas possibilidades ficcionais”, diz.

O processo criativo de Vieira para O Rasga Rua trouxe elementos inusitados, como o uso do tarô. Ele revela que cada capítulo do livro foi inspirado por uma carta do baralho esotérico. Na época em que escrevia o romance, Paulo estudava as cartas do tarô e todos os dias retirava uma carta. A partir do tema que ela indicava, escrevia o capítulo correspondente. “Foi uma experiência muito rica para mim, mas essa metodologia não aparece no texto final”, conta.

O único material extra-ficcional utilizado por Paulo para a construção do livro foi o documentário Antônio Rasga Rua, do poeta e escritor Águia Mendes, uma das poucas referências audiovisuais existentes sobre o personagem. “Esse material foi importante para que eu compreendesse melhor a figura de Antônio”, explica.

Dedicação ao teatro

Paulo Vieira iniciou sua trajetória teatral aos 17 anos e acumulou experiências diversas ao longo de décadas. “Eu faço teatro desde 1973. Tornei-me professor da Universidade Federal da Paraíba por necessidade, não por escolha. Isso aconteceu porque eu não tinha a competência necessária para ser um profissional freelancer”, explica o artista, que atuou como docente por mais de 30 anos.

A decisão de ingressar na carreira acadêmica surgiu após dificuldades financeiras que o impediram de cursar a formação teatral fora da Paraíba. “Naquele momento, os cursos de formação de ator estavam limitados a São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Eu não tinha condições de ir para esses centros. O mais próximo que pude alcançar foi um curso de licenciatura para ser professor de teatro”, afirma.

Como professor universitário, Vieira esteve diretamente envolvido na criação do curso de Teatro da UFPB e, posteriormente, no desenvolvimento do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. “Foi uma batalha criar um curso de teatro. Na época, para ser professor, era necessário um título acadêmico. Fiz mestrado e doutorado em teatro, tornando-me o primeiro professor com essas qualificações na Paraíba. Isso foi fundamental para estabelecer o curso”, relembra.

Apesar do êxito em consolidar o curso, Vieira decidiu reinventar-se após os 60 anos. “Entendi que não havia mais condições de permanecer na universidade. Resolvi voltar ao meu trabalho original, que é o de ator”, diz. Em 2020, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde buscou novas oportunidades na televisão e no cinema.

A mudança para o Rio coincidiu com um convite feito à sua companheira, a atriz Suzy Lopes, para integrar o elenco da novela Mar do Sertão. Desde então, Vieira tem diversificado sua atuação em diferentes plataformas. Recentemente, participou de um filme dirigido por Fernando Meireles, a ser lançado no próximo ano. “Foi uma experiência maravilhosa. Trabalhar com diretores de grande gabarito tem sido um privilégio”, destaca.

Além disso, Vieira integrou o elenco de Falas Negras, série da Globo que aborda questões sociais ligadas à negritude no Brasil. “Faço um advogado de acusação. É uma série que discute problemas sociais com uma ênfase humana muito forte. Essa abordagem é importante para o debate político e social do país, além de ser uma discussão sobre cidadania”, analisa.

O Rasga Rua representa mais uma etapa de sua vasta obra. Questionado sobre a possibilidade de adaptar o livro para teatro ou cinema, ele descarta a ideia: “Não tenho essa pretensão. Produzir cinema é muito caro. Já adaptei alguns dos meus romances para longas-metragens, mas esse em particular, não está nos meus planos”.

Embora o livro não seja um retrato fiel da vida de Antônio, é uma oportunidade de reflexão sobre os espaços e as pessoas que moldam a identidade das cidades. “Como paraibano, conheci diversos mendigos e loucos que construíram a memória coletiva da cidade. Porém, o interesse por essas histórias ainda é limitado. Escrever sobre a cidade é uma forma de dar voz às suas histórias e de construir um imaginário que ainda está sendo formado”, conclui.

PROGRAMAÇÃO DE HOJE

A partir das 9h – Feira de livros (Pavilhão)
9h – Visita guiada: exposição O Rosto de Camões – 10 Ideias para um Futuro Descolonizado, de João Francisco Vilhena (Portugal) (Claustro)
9h – Intervenção: Programa de Inclusão Através da Música e das Artes (Prima) (Capela)
Das 10h às 13h – Sessões de autógrafos de 13 livros (Pavilhão)
10h – Mesa: “Identidade e reconhecimento – Camões, o estrangeiro”, com Milton Marques Júnior (Paraíba), Maria Bochicchio (Itália) e Alexei Bueno (Rio de Janeiro) (Capela)
11h – Mesa: “Pluralidade e diversidade – Educação como pilar do futuro descolonizado”, com Maria Valéria Rezende (Paraíba), Vera Duarte Pina (Cabo Verde) e Neide Medeiros (Paraíba) (Capela)
Das 14h às 20h – Sessões de autógrafos de 24 livros (Pavilhão)
14h – Mesa: “Soberania e autodeterminação – A literatura na construção da nova cidadania”, com José Eduardo Agualusa (Angola), Ezilda Melo (Paraíba) e Valéria Lourenço (Ceará) (Capela)
15h – Mesa: “Equidade e justiça – culturas da diáspora e suas conexões”, com Angelica Ferrarez (São Paulo), Ademilson José (Paraíba) e Rodrigo Faria e Silva (São Paulo) (Capela)
16h – Mesa: “Reconciliação e reparação – Moçambique e Brasil: intercruzamentos literários”, com Ungulani Ba Ka Khosa (Moçambique), Analice Pereira (Paraíba) e Andréa Giordanna (Paraíba) (Capela)
17h – Visita guiada (claustro)
17h – Intervenção: Prima (Capela)
19h – Apresentação de Jessier Quirino (Adro)

– Entrada franca
– No Centro Cultural São Francisco (Ladeira São Francisco, s/no, Centro, João Pessoa)

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 29 de novembro de 2024.

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Fonte

A União

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