Flávio Cerqueira, o garoto fascinado por Rodin que se tornou um dos grandes escultores brasileiros

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Em 2001, a Pinacoteca do Estado de São Paulo recebeu uma marcante exposição do escultor francês Auguste Rodin (1840-1917), apresentando, entre outras obras, o gesso original usado como molde para fundir A Porta do Inferno. Naquele mesmo ano, Flávio Cerqueira, que trabalhava como office boy e era calouro de artes visuais, passava pela região sem a intenção de visitar o museu.

No entanto, ao avistar o cartaz com uma das esculturas de Rodin, pensou intrigado: “Que estátua interessante. Será que está aí dentro?”. Movido pela curiosidade, entrou na fila e atravessou, pela primeira vez, as portas de um museu. O impacto do encontro foi imediato. Fascinado, Flávio chegou a tocar uma das esculturas, batendo levemente nela para sentir o material.

“Ali foi meu encontro com o Rodin”, recorda o artista, em conversa com o NeoFeed. “A partir daquele momento, ele passou a me guiar na escultura. O trabalho tinha uma escala que não era monumental, mas humana. Aquilo me atingiu de tal forma que pensei: é isso que quero fazer.”

Em 2024, Flávio comemora 15 anos de uma trajetória marcada pelo diálogo criativo com o bronze. Suas obras estão em exibição na mostra Eutonia, na Galeria Simões de Assis, na capital paulista, até 14 de dezembro.

Em breve, em 7 de dezembro, o artista inaugura Flávio Cerqueira — um escultor de significados, sua primeira retrospectiva no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), apresentando 40 peças que revisitam momentos cruciais de sua carreira.

“Flávio aborda experiências e questões negras de maneira profundamente original, utilizando o bronze — um material historicamente associado às elites econômicas, políticas, religiosas, sociais e culturais”, comenta a historiadora Lilia Schwarcz, curadora da exposição do CCBB, em entrevista ao NeoFeed.

Como define a autora de Brasil: Uma Biografia, “ele subverte a lógica tradicional desse material ao empregá-lo para retratar as pessoas, não apenas em contextos de sofrimento, mas frequentemente em situações de lazer e plenitude.”

Lilia tem certeza de que Flávio vai ficar como um dos nomes a nova geração de artistas negros e negras, “que veio com uma perspectiva decolonial, alterando as agendas da história da arte e das exposições de arte também”, completa Lilia.

Um lugar todo seu

Em 7 de setembro de 1989, quando tinha 6 anos, Flávio estava na avenida Tiradentes, em São Paulo, com seu pai, Floriano, para assistir ao desfile da Independência. Ao se deparar com o imponente edifício da Pinacoteca, o menino perguntou o que era aquele lugar. “É um espaço onde a gente não pode entrar”, respondeu Floriano.

“Meu pai era operário e acreditava que aquele lugar era só para os ricos, impressionado pela grandiosidade do prédio. Nossa família não tinha nenhuma ligação com o mundo da arte”, relembra Flávio.

Criado na periferia de Guarulhos, o escultor foi o primeiro de sua família a concluir o ensino universitário e, atualmente, cursa doutorado em Artes Visuais, no Instituto de Artes, da Universidade Estadual Paulista (Unesp):

“O lance acadêmico, para mim, é mais uma questão pessoal do que profissional. É para entender como funciona, como quem diz: ‘Pô, tá vendo? Eu posso navegar nos dois mundos”. E Flávio, hoje, com 41 anos, navega bem por diversos mundos.

Seu trabalho tem entrada no mercado de arte e também nos principais acervos institucionais, a exemplo de MASP (Museu de Arte de São Paulo), Instituto Inhotim, MAC-USP (Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo) e a própria Pinacoteca de São Paulo.

Sua carreira também o levou a exposições internacionais em instituições como National Gallery de Washington e Museum of Fine Arts de Houston, ambos nos Estados Unidos, e Museu Stefano Bardini, na Itália.

Contador de histórias

Por trabalhar essencialmente com a figura humana, cada escultura de Flávio também representa uma personagem imersa em uma trama que se conecta tanto à sua trajetória pessoal quanto ao contexto social brasileiro. Em seus primeiros trabalhos, o artista camuflava o bronze com uma pintura eletrostática branca, dando a aparência da fragilidade da porcelana ao material rígido.

Ainda em seu processo de entrada no circuito artístico brasileiro, Flávio descreve esses trabalhos como monólogos: “Eu estava falando comigo mesmo. Era um momento reflexivo.”

Entre as obras dessa fase introspectiva, destaca-se Antes que eu me esqueça, de 2013 que retrata uma figura masculina de olhos fechados, tateando seu reflexo no espelho. As esculturas desse período raramente estabelecem contato direto com o espectador, com olhares vagos, direcionados para baixo ou voltados para si mesmas, intensificando o caráter introspectivo.

O trabalho de Flávio tem entrada no mercado de arte e também nos principais acervos institucionais (Foto: Romulo Fialdini)

Em suas obras, Flávio incorpora elementos do cotidiano, como o menino que picha na parede: “Nunca foi a primeira opção” (Foto: Romulo Fialdini)

Na obra “Não estou no meu passado”, o escultor usou as próprias costas como molde (Foto: Romulo Fialdini)

“Flávio aborda experiências e questões negras de maneira profundamente original”, diz a historiadora Lilia Schwarcz. Na imagem, detalhe de “Só eu sei” (Foto: Romulo Fialdini)

“Quando começo a pensar no outro, passo a incluir personagens femininas, porque começo a abordar questões humanas que podem tocar em mim, mas também em qualquer outra pessoa, incluindo mulheres”, diz o artista. Na imagem, “Para voltar a ser eu” (Foto: Romulo Fialdini)

Flávio já expôs na National Gallery de Washington, no Museum of Fine Arts de Houston e no italiano Museu Stefano Bardini. Na imagem, “Melhor nem saber” (Foto: Romulo Fialdini)

Para Lilia Schwarcz, o escultor “subverte a lógica tradicional desse material [do bronze] ao empregá-lo para retratar as pessoas, não apenas em contextos de sofrimento, mas frequentemente em situações de lazer e plenitude”, como em “O Jardim das Dádivas” (Foto: Romulo Fialdini)

Durante uma residência nos Estados Unidos, em 2018, Flávio criou sua primeira figura feminina. A obra “Uma palavra que não seja esperar” foi inspirada em Ruby Bridges, a primeira criança negra americana a estudar, nos anos 1960, em uma escola destinada exclusivamente a brancos (Foto: @EGSchempf)

Em 2016, em exposição individual na Galeria Triângulo, o escultor assume plenamente a materialidade do bronze, como na peça “Passarinho” (Foto: Edouard Fraipont)

Na primeira fase de sua carreira, Flávio camuflava o bronze com uma pintura eletrostática branca, dando a aparência da fragilidade da porcelana ao bronze, como em “Antes que eu me esqueça” (Foto: acervo.pinacoteca.org.br)

“A Porta do Inferno”, do francês Rodin, foi o que levou o artista brasileiro a querer ser escultor e trabalhar com bronze (Foto: musee-rodin.fr)

Na sua exposição individual, realizada na Galeria Triângulo, em 2016, Flávio assume plenamente a materialidade do bronze, apresentando figuras mais dinâmicas e carregadas de desejo. Entre os destaques estão Avua! e Passarinho, que exploram o sonho do voo. Essas obras marcam uma transição para um momento mais expansivo e ambicioso.

Durante uma residência no Kansas City Art Institute, no Missouri, Estados Unidos, em 2018, Flávio criou sua primeira figura feminina. Inspirado pela história de Ruby Bridges, a primeira criança negra, nos anos 1960, a estudar em uma escola destinada exclusivamente a brancos, ele esculpiu Uma palavra que não seja esperar.

A obra retrata uma jovem caminhando com determinação, equilibrando uma pilha de livros sobre a cabeça, simbolizando o peso e o poder do conhecimento em meio à luta por igualdade.

“Até então, minha relação com o trabalho era muito pessoal; eles falavam das minhas experiências com o mundo, por isso as figuras masculinas”, explica. “Quando começo a pensar no outro, passo a incluir personagens femininas, porque começo a abordar questões humanas que podem tocar em mim, mas também em qualquer outra pessoa, incluindo mulheres.”

Elementos do cotidiano

Um aspecto marcante no trabalho de Flávio é a incorporação de elementos do cotidiano, que dialogam com suas esculturas e expandem suas narrativas. Letras pichadas, livros, espelhos e objetos urbanos, como tênis e bonés, integram suas personagens, conferindo-lhes proximidade com o universo contemporâneo.

Além disso, suas obras frequentemente sugerem movimentos, como o ato de pichar, regar uma planta ou soltar uma bolha de sabão, capturando instantes de ação e transformando-os em momentos de contemplação:

“Eu coloco o bronze em um lugar comum”, comenta o artista. “Porque não estou retratando nenhum herói, personalidade ou acontecimento histórico. Estou trazendo situações cotidianas e usando o bronze para dar legitimidade a essas cenas do dia a dia, mostrando que elas são dignas de serem eternizadas”.

Na exposição Eutonia, Flávio apresenta seis trabalhos inéditos que exploram sensações de dor e força. Em um objeto de parede, o escultor utilizou suas próprias costas como molde, imprimindo uma mensagem: “Não estou no meu passado”.

A frase, gravada no dorso, surge como uma cicatriz, simbolizando um ponto de reflexão sobre o presente e o passado do artista.

Em Desenho Cego, Flávio faz uma homenagem ao ato de esculpir. A obra retrata uma figura masculina de olhos fechados, borrados de argila, segurando uma especa com uma das mãos.

Com a ferramenta, ele rasga a própria pele a partir da palma, ampliando a linha que simboliza a linha da vida.

“Estou fazendo uma alegoria à minha relação com a escultura. Porque, nos últimos 20 anos, tudo o que eu tenho, tudo o que eu conquistei, tudo o que eu aprendi foi por causa da escultura”, conclui o artista, que, ao dar forma ao bronze, não apenas molda o mundo, mas também a si mesmo.

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Neofeed

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