Um século de amor: aos 103 anos, Seu Enio recorda os elencos históricos do Figueirense

A pergunta é inevitável: existe uma receita para chegar aos 103 anos? Enio Schlemper hesita um pouco, ensaia uma explicação e começa a falar de trabalho. Aos 12 anos, saiu da escola para ajudar o pai, carroceiro em Alfredo Wagner, onde nasceu, e não parou mais. E não foram aqueles 30 e poucos anos para garantir a aposentadoria – ele só parou, de fato, em 2014, um pouco antes de completar 93. Ou seja, com ou sem carteira assinada, foram mais de oito décadas de labuta, das estradas aos balcões de loja e bar, passando por experiências como cartorário e mecanógrafo, o profissional que vivia de consertar máquinas de datilografia.

Sócio do Figueirense há quase 60 anos, Enio acredita na retomada da boa fase – Foto: Germano Rorato/ND

Deduz-se que, para ele, trabalho é sinônimo de realização. Nunca ficou doente para valer, tem um casamento de 75 anos com Nilsa Wanda Pinto Schlemper, impressiona muitos marmanjos que frequentam a mesma academia de ginástica e ainda se arrisca a ver, com um dos filhos, o Figueirense, time do coração, jogar no estádio Orlando Scarpelli. Neste ponto, admite, tem sofrido um pouco nos últimos anos, mas acredita numa virada de chave a partir da próxima temporada. “O time vai voltar bem, porque tem uma torcida forte”, aposta.

Enio Schlemper nunca foi muito de se informar sobre o que ocorria no Brasil e no mundo – afinal, passou por uma guerra mundial, muitos sobressaltos na economia brasileira, golpes de Estado, ditaduras, presidentes da República que cometeram insanidades a ponto de dar um tiro no coração ou renunciar sem explicar por quê.

A política resumiu-se, na verdade, a algumas decepções. Uma vez, viu um tio se candidatar e perder uma fazenda que tinha em Bom Retiro. Era um tempo em que não havia fundos eleitorais para bancar os postulantes a cargos eletivos. Em outra ocasião, o dono do cartório onde trabalhava, no bairro Estreito, foi boicotado por parlamentares venais e dados a comprar votos. “Eu escutava rádio, mas nunca me interessei por política”, afirma.

“Sempre trabalhei, caminhei e me cuidei muito”, diz, enfim, tentando explicar as razões da longevidade que a maioria não consegue alcançar. Muito lúcido e com o reforço da academia, ainda impressiona e cativa seus três filhos, sete netos, oito bisnetos e o único tataraneto que teve até o momento.

Serra acima, em carroças puxadas por bois

As dificuldades da infância, uma realidade comum à maioria das pessoas de sua geração, moldaram Enio Schlemper e o prepararam para a vida. É difícil imaginar, hoje em dia, alguém levando louças de barro ou barris de cachaça de Palhoça para Lages, pela estrada antiga, em carroças puxadas por juntas de boi. Eram 12 dias de viagem, enfrentando estradas pedregosas e cheias de curvas e aclives. “Fiquei muitos anos nessa lida”, conta ele.

Em 1937, Ênio se mudou de Alfredo Wagner (então chamada de Barracão, ainda pertencente ao município de Bom Retiro) para Florianópolis. Residindo no Continente, ainda como carroceiro, passou a transportar (pela ponte Hercílio Luz, única travessia física existente) areia do Abraão para o Centro da cidade, onde estava sendo construído o prédio dos Correios, na praça 15 de Novembro.

Um ano depois, morando com uma tia no Estreito, conseguiu uma vaga nas obras de pavimentação da estrada de São Pedro de Alcântara. Trabalhou ainda como seleiro, ao lado do pai, ajudou um tio num balcão de bar e sorveteria e foi empregado do clube Seis de Janeiro, no bairro Balneário.

Enio Schlemper relembra os diferentes trabalhos que teve, sinônimos de realização – Foto: Germano Rorato/ND

Recordações da vila natal

Depois de curtos períodos como cartorário e funcionário de banco, Ênio Schlemper passou a consertar máquinas de escrever, junto com um cunhado. Foi nessa atividade – que durou algumas décadas – que encerrou sua vida profissional. A aposentadoria formal foi em 1975, já como mecanógrafo, mas a retirada definitiva veio quase 40 anos depois.

Dos tempos de infância, recorda que Alfredo Wagner, uma vila com casas que podiam ser contadas nos dedos, também foi alcançada pelas tropas da Revolução de 1930 que apoiavam a decisão de Getúlio Vargas de tomar o governo central. “Minha mãe fazia comida para os revoltosos, eu andava com eles e cheguei a ganhar carne do gado que eles matavam”, recorda.

Da cidade natal, lembra ainda das brincadeiras de carretão, aproveitando os muitos morros que havia para descer pirambeira abaixo. Ao lado dessa reminiscência, também recorda – um pouco conformado – dos amigos que perdeu, porque não conseguiram se tornar centenários como ele.

Paixão e boas lembranças do time do coração

O amor pelo Figueirense é um capítulo especial na história de vida de Enio Schlemper. De memória privilegiada, ele recorda de elencos memoráveis, de títulos e campanhas que todo bom torcedor faz questão de lembrar e citar, seja nas conversas com outros alvinegros, seja nas refregas com os rivais avaianos, dentro e fora da família.

Uma das lembranças mais caras é da primeira participação no Campeonato Brasileiro, em 1973, após uma disputa de três jogos contra o Avaí. No ano anterior, o Figueira ganhara o título estadual, com um time que tinha nomes do porte de Pinga, Moenda, Adairton, Caco, Luís Éverton, Tião Marino e Landi.

Foi a fase em que o clube era comandado pelo major José Mauro da Costa Ortiga, “um grande homem”, segundo Enio Schlemper. Depois vieram jogadores como Toninho, Dito Cola, Sérgio Lopes, Marcos Cavalo e Casagrande. Com este time, e mais alguns reforços, o Alvinegro fez uma bela campanha no Brasileirão de 1975. O clube era comandado em campo pelo técnico Lauro Búrigo, que saiu e voltou várias vezes, e chegou a ter zagueiros como Abel Braga e Levir Culpi, ambos de passagens rápidas pelo Scarpelli.

O torcedor centenário lembra das arquibancadas metálicas do estádio e das incontáveis vezes em que foi com o filho, Enio Schlemper Júnior, ver partidas em que quem levantasse não conseguia mais sentar, tamanha a lotação, especialmente quando o adversário era um clube de renome nacional. Entre os perrengues, houve a queda para a segunda divisão do Campeonato Catarinense, nos anos 90, e a derrota para o Fluminense, na final da Copa do Brasil de 2007.

Outra grande lembrança é a do acesso para a Série A, em 2001, com um gol de Abimael, atacante que entrou no segundo tempo para decretar a vitória sobre o Caxias, do Rio Grande do Sul. Ali, o Alvinegro engatou uma sequência de sete anos na primeira divisão nacional, e ainda fez uma campanha excepcional em 2011, ficando muito próximo da vaga para a Copa Libertadores da América. A difícil campanha de 2005 teve como atração o craque Edmundo, que ajudou o clube a escapar do rebaixamento.

A rivalidade necessária

A esperança dos torcedores, e Enio Schlemper está entre eles, é que o Figueirense volte a lutar por títulos e suba de divisão em 2025. Ele diz que foi “uma ingenuidade” a direção entregar a administração para a empresa Elephant, que endividou o clube a ponto de estar indo para o quinto ano na Série C. “Acredito na competência de Paulo Prisco Paraíso, e acho que vamos voltar com força”, diz.

Enio tem uma sobrinha, Rosângela da Silva, que criou a torcida “Elas” e cuja casa é totalmente decorada com as cores do Alvinegro. “Ela pensa 24 horas por dia no Figueira”, conta ele. Paixão é isso – guardar os bons momentos e saber sofrer quando as coisas vão mal dentro e fora de campo. Seu Enio, com quase 60 anos como sócio do Figueirense, é capaz de citar gols antológicos e clássicos renhidos. E, ao mesmo tempo, defende o lado saudável da rivalidade. “Os dois times da Capital não vivem um sem o outro”, ensina.

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