Divã em alta: por que tanta gente está virando psicanalista ou psicólogo?


O Censo da Educação Superior aponta que a procura por cursos de psicologia disparou no Brasil. Entre 2010 e 2021, o aumento de matrículas nessa graduação foi de 112,4%. Censo Brasileiro de Psicologia, de 2022, mostra que mais da metade (53,6%) dos psicólogos em atuação no país se formaram depois de 2010
GETTY IMAGES via BBC
Christian Gonçalves era um bem-sucedido advogado, chefe do departamento jurídico em uma empresa. Acumulava 22 anos de experiência na profissão, e um dia, em uma sessão de terapia, rememorou sua carreira.
“Estava emocionado. Contei que tinha orgulho de ser a voz daqueles que não tinham voz, de participar da concretização da Justiça”, lembra.
Concluiu dizendo que era por isso que ele não gostava de ser advogado. “Não?”, perguntou a analista.
Foi um ato falho, mas Christian não teve tempo de falar a respeito. A sessão tinha chegado ao fim.
A cena o deixou pensando por dias. Até que concluiu que não foi por esses nobres motivos mencionados que ele escolheu o direito. Foi por algo bem mais prático: estabilidade financeira.
Filho de pais “hippies”, como ele descreve, Christian diz que optou por uma carreira com mais chances de afastá-lo das oscilações de renda que marcaram sua infância.
A conclusão foi um ponto de não retorno. “A partir daí, a carreira se tornou insuportável, careta, a gravata passou a me dar calor”, lembra Christian.
Ele, que já vinha alimentando um interesse pela psicanálise, mergulhou no assunto, abandonou o direito e virou psicanalista.
“Hoje, aos 51 anos, sou um ex-advogado que se converteu completamente à psicanálise.”
Christian faz parte de um movimento que vem ganhando força. Profissionais de diferentes áreas que decidem, a certa altura da vida, se tornar terapeutas.
Uns combinam a nova atividade com a antiga carreira. Outros, como Christian, largam tudo e recomeçam do zero.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), uma em cada oito pessoas tem algum transtorno ou doença mental no mundo.
A pandemia e as crises que se acumularam nos últimos anos trouxeram a saúde mental para o primeiro plano das preocupações globais.
No Brasil, de acordo com um levantamento da ONG de saúde Vital Strategies, em parceria com a Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), do Rio Grande do Sul, os casos de depressão entre 2019 e 2022 (ou seja, antes e depois do auge da crise de covid-19) aumentaram 41%.
Cada vez mais celebridades de diversas áreas, como recentemente o cantor sertanejo Zé Neto e o vocalista da banda de pop rock Imagine Dragons, Dan Reynolds, falam sobre a própria experiência, o que vem ajudando a derrubar tabus.
Quando se percebe um aumento de casos e se fala mais sobre o assunto, é natural que a procura por ajuda também cresça.
Nos Estados Unidos, a porcentagem de adultos que fazem algum tipo de terapia saltou de 9,5% para 12,6% entre 2019 e 2022, segundo a NCHS, a agência governamental para estatísticas de saúde.
Isso acaba, consequentemente, impulsionando a demanda por mais profissionais.
No Reino Unido, por exemplo, a Associação Britânica de Aconselhamento e Psicoterapia registrou um salto de 27% de associados entre 2020 e 2023.
Por aqui, a tendência também é de alta. O Censo Brasileiro de Psicologia, de 2022, mostra que mais da metade (53,6%) dos psicólogos em atuação no país se formaram depois de 2010.
O Censo da Educação Superior aponta que a procura por cursos de psicologia disparou no Brasil. Entre 2010 e 2021, o aumento de matrículas nessa graduação foi de 112,4%.
No ano passado, na Fuvest, principal vestibular do país, psicologia ficou atrás apenas de medicina entre os cursos mais concorridos.
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Os novos terapeutas
A Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), ao captar o aumento da demanda, criou um projeto de bolsas para formação de afrodescendentes, indígenas e refugiados.
Além disso, criou um programa de formação para os chamados “leigos”, profissionais que não vêm das áreas mais próximas da psicanálise, a psicologia e a medicina.
Aqui, cabe uma breve explicação para esclarecer as diferenças.
A psicologia é um campo amplo que trata do comportamento humano e de processos mentais.
Um psicólogo profissional cursou uma faculdade de psicologia, um curso de ensino superior com duração média de cinco anos, e fez estágios supervisionados.
Já a psicanálise tem uma abordagem que busca compreender camadas da mente humana: o inconsciente e o subconsciente.
Um psicanalista profissional tem uma formação universitária prévia — em qualquer outra área do conhecimento — e fez depois um curso livre de psicanálise, que dura em média dois anos.
Os psiquiatras, por sua vez, são médicos. Eles cursam medicina e se especializam em saúde mental.
Em geral, os psicanalistas são psicólogos ou psiquiatras. Mas o crescimento do interesse da sociedade pela saúde mental e o aumento da demanda por profissionais está abrindo as portas para gente com outras formações.
Eles não são poucos. De acordo com o Censo Brasileiro de Psicologia, 16,7% dos psicólogos no país têm outro diploma universitário.
Ruth Naidi, presidente da SBPRJ, diz que a procura de psicólogos e médicos pela formação em psicanálise não se alterou nos últimos anos. Mas a de leigos, sim.
“Freud, o criador da psicanálise, não queria restringir o ofício de psicanalista aos médicos. Ele recusava a ideia da psicanálise como uma ciência médica”, diz.
Para Naidi, a psicanálise requer uma formação humanista. “Isso, infelizmente, é difícil de se adquirir na faculdade de medicina. A de psicologia favorece um pouco mais, mas é incompleta”.
Por isso, segundo ela, os profissionais leigos contribuem com um olhar diferente, especialmente os que vêm de áreas humanas e sociais.
É o caso de Milton Kazuo Norimatsu. Aos 68 anos, ele fez um longo caminho até se tornar psicanalista. Começou na primeira faculdade, de engenharia.
Nem chegou a concluir o curso, nos anos 1970, mas a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) o ensinou a “fazer contas”, o que abriu o caminho para que ele construísse uma sólida carreira, que chegou ao fim em 2004.
Naquele ano, gerente financeiro de um escritório de advocacia em São Paulo, Norimatsu sentia que a saúde não andava bem. Sofria de insônia e chegou a passar por um procedimento de cateterismo.
Além disso, achava que estava saturado do trabalho. “Isso despertou uma voz interior que dizia que eu iria morrer se continuasse trabalhando como executivo na área financeira”, lembra.
“Interpretei aquilo no sentido literal, mas hoje percebo que a ameaça era morrer interiormente. Eu estava na crise da meia-idade.”
Ele largou o emprego e se dedicou integralmente à faculdade de direito, que estava começando. Em 2009, agora formado e inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, Milton sentia a mudança de ares.
Sair do “universo lógico-matemático para ser advogado representou um maior reconhecimento da minha dimensão humana”, diz.
“Mas algo dentro de mim exigia um olhar mais ampliado.”
Ele seguiu na advocacia, porém sempre inquieto. Até que, em 2019, começou uma pós-graduação em psicoterapia junguiana — ou psicoterapia analítica, linha que enfatiza mais o inconsciente e busca integrar aspectos pessoais e universais da psique humana, enquanto a freudiana foca mais no passado e nos conflitos internos.
Em 2022, com a nova formação, encerrou as atividades no direito e começou a atender como terapeuta.
“Concluí que a maior obra a ser feita estava dentro de mim. Trata-se do processo que Carl Gustav Jung [fundador da psicologia analítica] chamou de ‘individuação’, que em termos reduzidos pode ser considerado um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual.”
Marta Neckel Menezes, 58 anos, de Chapecó, também teve uma longa carreira antes de se dedicar à saúde mental.
Começou como datilógrafa aos 14 anos, cursou direito e se tornou servidora pública no Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina, de onde se aposentou após 26 anos de serviços prestados.
Aposentada, fez cursos de capacitações voltadas ao desenvolvimento humano, mas um dia se deparou com a grade curricular da faculdade de psicologia — e se encantou. Em 2022, aos 56 anos, ela se formou.
Os desafios de recomeçar
Largar a carreira ou se desdobrar entre o emprego atual e o investimento para se tornar terapeuta traz uma série de desafios, que vão de privações financeiras a etarismo.
Marta Menezes lembra que os gastos com mensalidades, livros e deslocamentos, além de psicoterapia pessoal e eventos de extensão, foram consideráveis. Ainda mais que sua fonte de renda passou a ser apenas a aposentadoria.
A pediatra Renata Rossi, de São Paulo, atualmente se divide entre a medicina e a psicologia. Ela cita também que o retorno financeiro, pelo menos no início da carreira, pode não compensar. Ainda mais quando se é médico.
Foi só na terceira vez que o trabalho com a saúde mental ameaçou entrar em sua vida que ela o abraçou de fato. A primeira foi no vestibular: passou em medicina e em psicologia, mas optou pela primeira.
Na graduação, ao definir a especialidade, ela cogitou a psiquiatria infantil, mas acabou indo para a cardiologia pediátrica. Mais de 20 anos depois, o cenário mudou.
“A pandemia foi crucial. Por ser médica e trabalhar em hospital, fiquei separada dos filhos, tendo uma vida dupla com muito estresse no trabalho e muito tempo livre e calmaria em casa”, lembra.
Pouco antes dos primeiros meses de quarentena, Rossi começou a registrar e estudar sonhos, se interessou por neurociência. Acabou caindo na psicologia analítica de Jung, que hoje é seu trabalho, duas vezes por semana. Nos outros dias, segue no hospital.
Christian Gonçalves, por sua vez, lembra do estigma de largar a carreira e começar do zero, ainda mais quando já se tem estabilidade financeira e uma idade em que não é comum dar uma guinada dessas.
“O mais difícil foi, em dado momento, achar que eu precisava justificar para as pessoas a minha vontade. Isso me assustava”, diz.
“Financeiramente, tive que dar alguns passos para trás, mas isso não me afastou do desejo de permanecer aqui e continuar. Em algum momento, a questão financeira vai melhorar.”
As vantagens da experiência
Renata Rossi diz que sua formação como médica é interessante e proveitosa no novo rumo de sua carreira.
“Porque lido diretamente com queixas do sofrimento humano”, diz.
“Como pediatra, tive oportunidade de me relacionar com pacientes psiquiátricos e com famílias e suas dinâmicas.”
Para Milton Norimatsu, as profissões anteriores se somam, tanto no que representam em sua trajetória como no serviço que ele pode oferecer aos pacientes.
“Houve a profissão de ‘entrada’, executivo na área financeira, e a intermediária, advogado, que mesclava a ‘razão’ da anterior com o lado humano. Finalizei com uma profissão integralmente voltada ao humano”, diz.
“Acredito que essa trajetória me fez acumular experiências de vida que me diferenciam de quem está começando agora. Mas ser diferente não é ser melhor nem pior.”
A idade, que pode fomentar preconceito, tem essa potencial vantagem da experiência. Rossi acredita que tem uma visão diferenciada em relação a colegas no início da carreira.
“Tenho 53 anos, é mais do que apenas uma outra profissão. São experiências acumuladas, filhos, separações, mudanças de cidade e de país, perdas e lutos, conquistas… São oportunidades para viver e reviver os acontecimentos, entender os ciclos em nós e nos outros.”
Para o mercado, a chegada desses novos profissionais é bem-vinda. “O perfil é mais eclético, obviamente”, diz Ruth Naidi, da SBPRJ.
“Nunca antes tivemos tantos candidatos negros ou com padrões financeiros mais baixos ou profissionais leigos.”
Conselhos para quem quer seguir esse caminho
Marta Menezes acredita que quem estiver interessado em se enveredar para a psicanálise deve estar mobilizado para se aprofundar para valer.
“A pessoa tem que ter o desejo de estudar as práticas e saberes da psicologia, de ocupar um lugar de escuta, acolhimento e cuidado”, diz.
“É preciso estar preparado para uma imersão profunda na dimensão mais radical da existência humana.”
Milton Norimatsu ensina que viver o que se aprendeu, na psicologia junguiana, é fundamental.
“É compreender que existe uma dimensão em nossa psique, o inconsciente, que atua de forma autônoma e que almeja ser conhecida. Deve-se mergulhar nesse processo de autoconhecimento.”
Renata Rossi, por sua vez, dá um conselho prático: não se afobe.
“A formação leva tempo. Se a pessoa já estiver bem estabelecida, dependendo da idade e de outros fatores, pode fazer de forma mais gradual, focando numa formação sólida antes do atendimento.”
Para ela, isso é essencial para combater o que acredita ser um grande perigo atual, a medicalização da psicologia.
“Não devemos olhar para sintomas e queixas como doenças a serem combatidas e tratadas.”
Aposentada no TRT-SC, Marta vive a satisfação de se realizar em outra carreira.
“Desfruto da alegria de participar da jornada psicoterápica dos meus pacientes e de escutar as singularidades de cada sujeito que atendo — no que é dito, no que falta dizer e no que impede que se diga.”
Ela e os outros profissionais entrevistados fazem coro à imensa maioria dos entrevistados pelo Censo Brasileiro de Psicologia.
Segundo o levantamento, 85,7% dos psicólogos do país se consideram realizados com a profissão.
Para Milton, o desenvolvimento de seu processo de individuação fez com que ele tivesse experiências que iam além da esfera pessoal.
“Continham aspectos mais gerais que, ao serem compartilhados, poderiam ajudar outras pessoas que estivessem passando por problemas semelhantes aos que enfrentei, especialmente na meia-idade.”
Justamente por isso, ele acredita que presta um serviço melhor à sociedade do que quando era advogado.
“Como executivo da área financeira, então, nem se diga”, enfatiza.
“Vejo muito mais sentido no que estou fazendo agora. A sensação de tédio constante sumiu, minha vida se renovou.”
Christian Gonçalves também usa a antiga profissão como parâmetro para avaliar que, hoje, se considera mais realizado.
“Se na advocacia eu tenho que justificar e racionalizar para obter alguma coisa objetiva, aqui na psicanálise eu lido com a subjetividade. Eu não tenho que ser a voz. Eu sou a escuta.”
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