Quantidade de crianças e adolescentes em situação de rua cresceu 12 vezes na cidade de SP nos últimos 10 anos

Hoje, 3.961 menores de 18 anos vivem nas ruas da capital paulista, o que representa 46% do total de crianças e adolescentes em situação de rua no Brasil. Violência e prejuízos ao desenvolvimento cognitivo são algumas das consequências em crescer nesse ambiente, especialmente durante a primeira infância. A quantidade de crianças e adolescentes em situação de rua aumentou 12 vezes na cidade de São Paulo nos últimos dez anos. Em 2013, 309 menores de idade viviam nas ruas da capital paulista. Em setembro deste ano, já eram 3.961.
Os dados são do Cadastro Único (CadÚnico) do governo federal, foram levantados pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da Universidade Federal de Minas Gerais (ObPopRua/UFMG) e obtidos com exclusividade pela GloboNews.

A capital paulista registrou, em setembro deste ano, 86.344 pessoas em situação de rua. Ou seja, 5% daqueles que vivem nas ruas de São Paulo são crianças e adolescentes. Há dez anos, os menores representavam 4% dessa população. Mesmo que o crescimento desse percentual não tenha sido significativo, a quantidade de crianças e adolescentes nas ruas da maior metrópole da América Latina preocupa os especialistas.
“Essa é uma situação que não poderia perdurar por sequer um dia. A Prefeitura [de São Paulo] tem os dados dessas famílias e poderia muito rapidamente fazer uma força-tarefa para que, em um prazo urgente, fosse dado um encaminhamento para a situação dessas crianças e adolescentes”, afirma o coordenador do ObPopRua da UFMG, André Luiz Dias.
A capital paulista concentra 28% do total de pessoas em situação de rua no Brasil, de todas as faixas etárias. No entanto, tratando-se de crianças e adolescentes, o percentual é ainda maior: 46% dos menores de idade que vivem nas ruas do país estão na cidade de São Paulo. E sete em cada dez deles são negros.
A Prefeitura de São Paulo disse, por meio de nota, que ampliou em 850% a oferta de acolhimento para famílias em situação de rua, passando de quatro serviços em 2019 para 38 atualmente. “São 5.278 vagas em Centros de Acolhida Especial para Famílias (CAEF), Hotéis para Famílias e Vilas Reencontro”, segundo o comunicado (leia a íntegra abaixo).
Subnotificação
Apesar de alto, o número ainda está subnotificado, de acordo com os especialistas consultados pela reportagem. A cidade de São Paulo tem a segunda menor taxa de atualização cadastral do CadÚnico entre as capitais brasileiras: 82,8% em outubro deste ano, ficando atrás apenas de Florianópolis. Isso significa que dois em cada dez cadastros estão desatualizados, e que o número de crianças e adolescentes nas ruas pode ser ainda maior.
Além disso, a população em situação de rua ainda não começou a ser contabilizada no censo demográfico realizado pelo IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. O IBGE passou a fazer estudos e testes sobre como abranger essa população somente no ano passado, após uma decisão da Justiça que determinou a inclusão desse grupo no censo. Essa decisão judicial foi resultado de uma ação civil pública proposta pela Defensoria Pública da União.
De acordo com Marcos Antonio da Silva, coordenador do Projeto Meninos e Meninas de Rua, é difícil encontrar dados concretos sobre essa população, em especial os menores de idade. “Crianças de rua são as mais vulneráveis ao trabalho infantil e à violência sexual. É importante que o IBGE contabilize a população em situação de rua”, afirma.
Violência contra crianças
Crianças e adolescentes representam 5% da população em situação de rua, mas são 33% das vítimas de violências cometidas contra esse grupo. Em 2023, segundo um levantamento feito pela Globonews a partir de dados do Disque 100, foram registradas 305 denúncias de violência contra pessoas em situação de rua na capital paulista. Em 100 delas, a vítima era um menor de idade.
Neste ano, até 21 de outubro, já foram registradas 160 denúncias de violência contra crianças e adolescentes em situação de rua na cidade. A maior parte das violações (96%) são contra a integridade física dos menores.

Prejuízos ao desenvolvimento
Nas ruas, as crianças também ficam sob condições que podem prejudicar o desenvolvimento físico e cognitivo delas. “A criança fica exposta ao sol, não garante alimentação adequada, não tem onde beber água e usar o banheiro, porque tem uma restrição muito grande dos comércios que não aceitam a entrada de pessoas que não estão consumindo”, explica o coordenador do Projeto Meninos e Meninas de Rua.
Esses danos à saúde, especialmente quando acontecem durante a primeira infância — até os 6 anos de idade — podem gerar consequências irreversíveis para esses indivíduos. Por exemplo, déficit de altura e maior probabilidade de contrair infecções e doenças crônicas ao longo de toda a vida.
Na capital paulista, 44% dos menores que vivem nas ruas têm menos de 6 anos: são 1.748 crianças.
Trabalho nas ruas
Existem também crianças e adolescentes que, apesar de terem uma casa para voltar para passar a noite, ficam o dia inteiro nas ruas. Elas também sofrem com as consequências de crescer nesse ambiente, mas não são contabilizadas como população em situação de rua.
“Esse é o maior grupo. A maioria [das crianças] não dorme na rua, mas trabalha nela de 3 a 12 horas por dia, entre três e sete dias por semana”, diz Silva, coordenador do projeto Meninos e Meninas de Rua.
Segundo um censo realizado em 2022 pela Prefeitura de São Paulo, 79,5% das crianças e adolescentes que estão nas ruas frequentam esse ambiente somente no período da tarde. A maior parte delas (78%) está na rua porque precisa gerar renda para sobreviver e ajudar no sustento da família. Para isso, quatro em cada dez vendem pequenos produtos, como panos de prato, balas e chocolates.
Há ainda 33,5% desses menores que praticam a mendicância, ou seja, vão às ruas para pedir itens como dinheiro, comida e roupas.
Para a pesquisadora sobre crianças em situação de rua pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP) Mariana Zan, é importante pensar em ações voltadas aos menores que têm essa rotina: “Essa criança não precisa de lugar para pernoitar em uma política pública. Precisa de um contraturno na escola para que ela não vá morar na rua eventualmente.”
Políticas públicas para toda a família
No Brasil, a questão das crianças e adolescentes nas ruas também está diretamente relacionada à pandemia — quando famílias inteiras passaram a viver nas ruas pela perda de emprego e impossibilidade de pagar aluguel, por exemplo — e com a questão migratória. Por isso, os especialistas ressaltam a importância de políticas públicas para toda a família e, em especial, voltadas para as mulheres.
Mais de 80% das crianças e adolescentes que passam o dia nas ruas da capital paulista tem como responsável uma pessoa do sexo feminino, ainda de acordo com os dados levantados pela Prefeitura de São Paulo.
“São mulheres que não têm emprego ou não conseguem procurar emprego porque não têm com quem deixar os filhos. Quando não existe rede de apoio para a mulher, as crianças vão para a rua”, explica a advogada e pesquisadora Zan.
Segundo o coordenador do Colaboratório de População em Situação de Rua da Fiocruz, Marcelo Pedra, é necessário construir propostas diferenciadas para as mulheres no atendimento do SUS, o Sistema Único de Saúde, na assistência social e nos abrigos que acolhem esse grupo. “Como 70 a 80% da população em situação de rua são homens, as mulheres e as crianças perdem prestígio num lugar que já é de total desprestígio”, afirma o pesquisador.
O que diz a Prefeitura de SP
“A Prefeitura de São Paulo ampliou em 850% a oferta de acolhimento para famílias em situação de rua, passando de 4 serviços em 2019 para 38 atualmente. São 5.278 vagas em Centros de Acolhida Especial para Famílias (CAEF), Hotéis para Famílias e Vilas Reencontro. A atual gestão realizou o mais completo Censo de Crianças e Adolescentes em Situação de Rua, depois da cidade ter ficado 17 anos sem atualização da pesquisa, e criou em dezembro de 2023 o Auxílio Reencontro Moradia, que já concedeu 406 benefícios, sendo 275 individuais e 131 para famílias. Somente neste ano a Prefeitura já aplicou R$ 14,9 milhões no Programa Renda Mínima, que atende 16.114 famílias. Para garantir acesso a direitos básicos, prevenir e enfrentar situações de violência, a cidade possui ainda o Centro de Referência dos Direitos da Criança e do Adolescente (CRDCA), em parceria com o Serviço Franciscano de Solidariedade.”

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